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Diário de Bordo #21 - O (re)encontro com Deus

  • Foto do escritor: Felipe Schadt
    Felipe Schadt
  • 2 de jun.
  • 11 min de leitura

Bono em sua performance no filme "Stories of Surrender" (Foto: Divulgação AppleTV+)
Bono em sua performance no filme "Stories of Surrender" (Foto: Divulgação AppleTV+)

> Me levantei de sopetão da poltrona 62, da fileira H, da sessão 6 do Balcão Superior me desculpando com as pessoas que estavam do meu lado completamente concentradas que, naquele momento de desconcentração, estavam me julgando pelo pecado que eu estava cometendo ao dar as costas para o que acontecia no palco.


Desci correndo pelas escadas rumo a galeria principal que dava acesso ao lounge que funcionava como um guarda-volumes improvisado. Meu celular estava dentro de uma bolsa especial e confiscado logo na entrada. O meu e o de todo mundo. Celulares eram proibidos naquele espetáculo. Não tive problemas para pegar meu telefone de volta. Não existiam filas, já que eu era o único ser vivo pagante que não estava apreciando o momento final do show. Precisei apenas mostrar o ticket que eu tinha um número qualquer impresso nele e que significava a gaveta que meu smartphone repousava.


Saí correndo pela Broadway Street, dobrei a rua 74 e, já sem fôlego, dobrei mais uma vez a esquina à minha esquerda para chegar na Amsterdam Street. Ali, nos fundos do Beacon Theatre, em Nova York, com grades improvisadas, pessoas curiosas, dezenas de fãs e no frio do final de outono, eu esperaria por um milagre: um encontro com Deus!


Câmbio!

.


Quando surgiram as primeiras notícias de que Bono - vocalista do U2 para os desavisados e viventes de outro planeta - lançaria seu livro de memórias, eu fiquei muito animado e com muito medo ao mesmo tempo. Sendo uma biografia, eu entraria na alma do meu artista favorito a cada palavra impressa no papel. Meu medo era justamente esse: entrar na alma do meu artista favorito. E se ele não fosse tudo aquilo que eu tinha certeza que ele era? E se ele confessasse algo horrível que me decepcionasse ao ponto de duvidar da minha admiração? E se esse livro fosse um martelo nietzscheano pronto para quebrar os pés do meu ídolo e fazê-lo desmoronar diante dos meus olhos?


Eu sempre me orgulhei de ter o Bono como referência máxima. Na minha cabeça, ele é inquestionável. "Procure por aí alguma coisa que desabone o Bono!", eu sempre desafiava - com esse trocadilho horroroso - quem quer que tentasse diminuí-lo. Suas ações dentro e fora dos palcos são fontes de inspiração, uma régua moral no qual conduzo minha insignificante existência. Por isso, e por muito mais que não caberia em um texto só, eu gosto de chamá-lo de Deus.


Minha mãe sempre "puxa minha orelha" quando menciono isso. Ela acha que eu estou blasfemando. Eu então provoco mais: "Pelo menos o meu Deus existe". Ela arregala os olhos e antes que ela possa protestar eu dou a punhalada derradeira na moralidade cristã presente na sala. "E ainda me deu um par de óculos". Acho que já vi minha mãe fazendo o sinal da cruz quando brinco com isso. Não fique brava, mãe. Tenho certeza que Deus (o seu) não deva achar ruim eu ser tão apegado ao filho favorito dele.


"The God's favorite son" (ou "O filho favorito de Deus") é o título de um DVD que tem o rosto do Bono em sua versão do início dos anos 90. Eu nunca assisti o conteúdo dele. Se trata de um conteúdo não-oficial do U2 e eu escolhi não apreciar o que fãs como eu falariam do meu ídolo. Talvez eu sempre acreditei que não precisasse de nenhuma confirmação de que ele era o que era. Oras, estamos falando de Deus - ou do filho favorito dele -, é óbvio que ele é uma questão de fé para mim.


E foi a fé nele que me fez comprar o livro logo na pré-venda. No dia 3 de novembro ele já estava na minha mão, pronto para ser lido. Mas eu não li. Eu queria me entregar por completo ao livro que chamava, por motivos óbvios, de "Bíblia". Quando eu ia começar, eu mesmo me dava uma desculpa para não ler: "Mas final de semestre é complicado com tanta prova pra corrigir", "Mas vai começar o natal e ano novo e é complicado ler nas festas", "Ih, mas vai começar o carnaval e é complicado ler na folia", "Poxa, vão ser 11 shows do Coldplay, é complicado..."


Cometer esse sacrilégio em busca de uma benção

No fundo eu sabia exatamente o que estava acontecendo. Eu não queria terminar o que eu julgava ser "meu encontro com Deus". E para não terminar, eu não começava. Mas sete meses depois, eu finalmente terminaria minha conversa com ele. E se você quiser saber como foi, eu escrevi um texto sobre isso, é só clicar aqui.


Voltando no dia anterior que eu recebi a "Bíblia" em casa, iniciava-se uma série de shows solos do líder do U2 em teatros norte-americanos. O espetáculo era justamente sobre o próprio livro, uma mistura de teatro, show e terapia ao vivo. Eu dizia para mim mesmo que eu não precisava ver esse show, já que nem o livro eu tinha lido. Sem contar que eu não tinha visto para os EUA, o que dificultaria mais ainda qualquer tentativa de ver esse show.


Mas quem disse que alguma coisa me impede quando o assunto é show dos meus ídolos? Rumores sobre shows do U2 em Las Vegas no final de 2023 me animaram para ir atrás de um visto. O pouco dinheiro que havia sobrado do que eu tinha gasto com os 11 ingressos de shows do Coldplay que estavam por vir naquela altura do campeonato, ajudaria a encarar uma loucura até a cidade do pecado para ver a comemoração dos 30 anos do meu segundo álbum favorito dos irlandeses, o "Achtung Baby", na impressionante Sphere (a casa de shows mais moderna do mundo).


Duas semanas antes de ir buscar meu visto no consulado americano, eu estava na frente do meu computador olhando as raras imagens dos shows solos do Bono e, com a calculadora do meu celular aberta, fazendo contas impossíveis de fechar. Acontece que datas extras do show foram anunciadas e eu estava prestes a cometer uma loucura.


"Você quer muito ir, não é?", perguntou minha companheira Carol que me conhece mais do que eu mesmo. Respondi que sim, mas disse que seria uma loucura eu me endividar por causa disso. Ela simplesmente pegou o computador dela, viu uma passagem para Nova York próxima a data do show, pegou meu cartão de crédito e comprou os bilhetes. "Pronto, agora você precisa comprar seu ingresso porque você já tem a sua passagem". Tudo bem que eu não resisti nem um pouco, mas ela fez o que eu queria ter feito. Ela me conhece mais do que eu mesmo.


No dia 03 de março de 2023 - seis dias antes da "Maratona de 11 shows do Coldplay" começar -, eu estava com meu ingresso comprado para ver Deus no teatro nos EUA e ingressos para vê-lo novamente, mas dessa vez com toda a banda - ou parte dela, já que o baterista não participou dos shows na Sphere - em Las Vegas. O ano dos shows!


Não falei para ninguém que eu iria. Só disse para meus chefes na época - que felizmente entenderam minha ausência de três dias - e para meus amigos de banda para que não marcassem nenhum compromisso no período. Do mais, fiz meu charminho nas redes sociais quando, do nada, apareci na Times Square fazendo graça.


Mas eu não estava sozinho. Minha amiga de fila de U2, Mari Teixeira, saiu do Rio de Janeiro e, depois de um rápido encontro no aeroporto de Guarulhos, me encontrou na terra do Tio Sam para se aventurar comigo em mais uma fila atrás daquele irlandês dono do mundo. Nosso plano era pedir para que ele autografasse nossos exemplares do seu livro de memórias. Uma tarefa fácil para quem já havia conseguido os óculos do altíssimo.


Eu e Mari em busca de um autógrafo de Deus nos nossos exemplares da Bíblia
Eu e Mari em busca de um autógrafo de Deus nos nossos exemplares da Bíblia

Mas não foi. Primeiro que não foi só eu e Mari quem tivemos essa brilhante ideia. Todos os fãs mais fervorosos de U2 também queriam o nome de Deus escrito por ele próprio em alguma página de seus livros. Assim que chegamos, nos deparamos com uma fila. Nota: sempre haverá filas nos shows do U2 em qualquer lugar do planeta e elas sempre serão um perrengue.


Nós não assistiríamos ao show daquela noite de 03 de maio. Nossos ingressos eram para o espetáculo do dia seguinte. Então resolvemos ficar na fila fazendo vigília para tentarmos a sorte de, no caso dele aparecer, ganharmos um dos poucos autógrafos que ele costumava disponibilizar quando aparecia na Amsterdam Street, na porta dos fundos do Beacon Theatre, em Nova York.


Havia rumores de que ele viria mais cedo, na parte da tarde, para ensaiar. Outros rumores davam conta de que ele só chegaria meia hora antes do show e entraria direto sem tempo para falar com ninguém. Acontece que o Bono mora no final da rua 74, uma reta virando a esquina da que estávamos. Daria para ele ir caminhando de sua mansão até o teatro, mas sua fama não deixa que ele ande despretensiosamente pelas ruas da cidade mais movimentada do mundo.


Horas de espera na fila encarando um frio que já se fazia presente quando movimentos de seguranças começaram a acontecer na rua onde estávamos. Barricadas foram improvisadas do outro lado da rua, carros pretos foram estacionados estrategicamente para impedir o fluxo do trânsito, a multidão começou a se agitar. Bono estava chegando. E chegou.


Eu e Mari estávamos há uns dez metros do iníco da fila (que ficava ao lado da porta que dava acesso aos fundos do teatro). Estávamos no limite do que os seguranças chamaram de "fim da fila", mesmo tendo metros e metros de pessoas atrás de nós. O esquema era para que o Bono fosse até onde estávamos e voltasse rumo à porta. Dito e feito.


Ele saiu do carro e gritos começaram a ecoar ao mesmo tempo que pedidos de silêncio surgiam como broncas. Existe uma máxima entre os fãs gringos de U2: "Não seja histérico se não você vai espantá-los e eles não chegarão perto dos fãs". Se esses caras [fãs gringos] passassem algumas horas nas filas dos shows do U2 aqui no Brasil, eles veriam o que é histeria de veradade.


Eu e Mari tentamos nos conter, mas à medida que ele se aproximava, a gente ficava cada vez mais nervoso. E não era a nossa "primeira vez" com ele. Tivemos a oportunidade de conversar com o Bono em Auckland, na Nova Zelândia, quando ele saiu da passagem de som e foi falar com os fãs que o esperavam no portão do estádio. Eu conversei com o Bono, dei o botton da minha banda para ele e ainda ouvi ele dizer que gostava de como a frase "Mudar o Mundo" soava bem. Mas isso é história para outro texto.


O fato é que assim que ele chegou perto dos fãs, ele anunciou que não poderia autografar nenhum livro naquela noite pois não poderia ficar muito tempo ali fora. Seria um "oizinho" e só. Eu aproveitei para levar meu cartaz que usei para pedir seus óculos no Brasil, seis anos antes, mas com uma faixa transversal escrito "Thank you", na esperança de que ele se lembrasse de mim e do que fez por mim. Ele olhou o cartaz por um segundo, juntou as mãos, disse "Thank you" e foi só. Seguiu dando "oizinhos" até a porta dos fundos do teatro.


O rápido encontro: Deus de mãos juntas de um lado, fiel (eu) de mãos abanando de outro
O rápido encontro: Deus de mãos juntas de um lado, fiel (eu) de mãos abanando de outro

"Faz muito tempo que ele não autografa nada", disse um dos fãs decepcionados. "Já é minha sexta tentativa e ele nunca pode autografar. Até nas saídas dos shows ele entra direto no carro dele sem nem falar nada", completou. Aquilo fez com que eu e a Mari pudéssemos ponderar bastante. Não iríamos assistir ao show da noite e poderíamos muito bem ter ficado esperando ele na saída, mas aquela informação mais nosso cansaço e fome, nos motivaram a ir comer uma típica pizza novaiorquina e ir para o Hostel descansar. Um erro amador.


Assim que acordei no dia seguinte e olhei meu instagram, vi imagens do Bono na saída do show daquela noite conversando com os fãs que, diferente de mim e da Mari, enfrentaram o frio e a garoa fina de Nova York. Mais do que isso, ele autografou vários livros. Quer mais? Uma equipe de filmagem estava capturando todas aquelas imagens para um possível documentário. Eu estava devastado! Deus havia me castigado ao escolher seus fiéis mais devotos. Minha falta de fé de que ele apareceria na saíde de seu show foi severamente punida.


Também acho que a "punição" veio por causa da minha recusa em me "sacrificar" pelo Deus roqueiro. Durante os shows do Coldplay no Brasil, dois meses antes da minha aventura em Nova York, fui convidado por um fã-clube brasileiro do U2 a participar de uma ação global do lançamento do álbum "Songs of Surrender". Quarenta cidades do mundo receberam um muro pintado com a frase de uma das quarenta canções que embalavam o álbum de releituras. Eu neguei minha participação por estar focado no violão do Chris Martin. Fiquei pensando se isso não foi uma espécie de blasfêmia.


A postagem que me devastou: Bono dando autógrafos na saída do show na noite anterior
A postagem que me devastou: Bono dando autógrafos na saída do show na noite anterior

Não havia muito o que ser lamentado, afinal de contas, era o dia do show e ainda haveria mais uma chance de vê-lo na entrada e outra na saída. Chegamos mais cedo ainda na fila e estávamos numa posição bem melhor que a do dia anterior, uns cinco metros da porta dos fundos do teatro. Como eu já morei na Filadélfia e ia quase todo final de semana para Nova York, não me importei em "perder" a cidade para ficar na fila em busca de um autógrafo. Mesmo assim, eu e a Mari demos uma pequena volta pelo Central Park na parte da manhã e claro, fizemos questão de ir na frente da casa do Bono bater palma pra ver se ele nos atendia. Não atendeu.


Como no dia anterior, passou pela fila como um foguete e entrou no teatro sem dizer muita coisa. Só o "oizinho" de sempre. Se eu quisesse tentar mais uma vez, eu teria que encontrá-lo na saída do show, do único show que eu assistiria. Eu não sabia o que fazer. Entrei no teatro sem saber o que faria e só decidi na hora, quando, de supetão, me levantei da poltrona que eu estava, e sacrifiquei a última performance da noite pela tentativa de um encontro com Deus no lado de fora do teatro.


Bono e seus "oizinhos"
Bono e seus "oizinhos"

Mas antes de eu cometer esse sacrilégio em busca de uma benção, eu vi uma das coisas mais tocantes no quesito arte de toda minha vida. Bono, meu Deus, dissecando a própria alma diante de uma plateia inteira da forma mais bonita que alguém poderia fazer. Seu espetáculo "Bono: Stories of Surrender" (Bono: Histórias de Redenção) é, no fim das contas, uma terapia ao vivo no qual ele exorciza os sentimentos que nutre pelo próprio pai. O mais divino dos rockstars mostrando toda sua fragilidade humana. Chorei em muitos momentos, pois a relação dele com Bob Hewson, seu pai, me faz lembrar a minha com Anselmo Schadt, o meu.


A última canção era, inclusive, uma ópera que ele cantava para Bob. Uma ópera que segundo o próprio Bono só pode ser cantada graças ao presente que seu pai deixou a ele: a voz de tenor. Mas eu não vi esse momento. Sabia que era a última cena e eu decidi sair correndo para tentar encontrar aquele tenor punk na rua.


Lá estava eu, ofegante na Amsterdam Street, já às cotoveladas com outros fãs que disputavam um pedaço da terra prometida que ficava ao lado da porta dos fundos do Beacon Theatre. Lá vinha ele, com um lenço envolta do pescoço, suado e exausto. Não parou. Entrou como um raio de luz entra num buraco negro de um Cadillac Escalade Premium Luxury de potas abertas que saiu tão rápido que o ar do suspiro de decepção ainda estava nos meus pulmões quando ele dobrou a esquina.


O meu (re)encontro com Deus, porém, aconteceria da maneira menos extraordinária possível. No sofá da minha casa, pela minha TV.


Meu reencontro com Deus aconteceu pela TV
Meu reencontro com Deus aconteceu pela TV

No último dia 30 de maio, foi lançado pela AppleTV+ o filme "Bono: Stories of Surrender", justamente um longa-metragem que mostra exatamente o que eu assisti naquele teatro em Nova York. E foi no domingo à noite que eu resolvi transformar minha sala em um templo de redenção.


Não me mexi. Pelo menos não que eu me lembre. Fiquei imóvel durante todo o filme, me reconectando com aquele sujeito celestial que me ensina a cada palavra a ser um ser humano melhor. Me transportei para o teatro outra vez e senti todo o poder daquela voz que martela um monte de verdades inconvenientes na minha cabeça. Verdades como: "Uma verdade sobre os artistas: em busca da verdade, cometemos mais inverdades que a maioria".


Depois de dois anos e 28 dias, eu finalmente assisti a performance final daquele espetáculo. Bono cantando Torna a Surriento, música de Ernesto de Curtis mas que ficou imortalizada na voz de Luciano Pavarotti. Era a música favorita de seu pai, e no teatro San Carlo, em Nápoles, onde o filme foi gravado, vi o tenor Bono perdoar Bob e a si mesmo aos pés da Bahia de Sorento. Essa foi a sua redenção e eu me rendi a ela. Tanto que muita coisa parece que mudou em mim (teria sido meu mundo?).


Rendido, deixei a lágrima cair. Como evitar? Deus estava na minha sala.


Câmbio, desligo!



Conhecimento é conquista.

-FS


Bono: Histórias de Redenção - trailer legendado

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