Diário de Bordo #26 - A cidade da liberdade
- Felipe Schadt

- 30 de jul.
- 7 min de leitura

“Berlim vale a viagem”, foi a frase que eu ouvi dias antes de embarcar para a capital alemã pela primeira vez há 12 anos. E é essa mesma frase que eu disse todas as vezes que tive que ir embora dessa cidade.
Se eu tentar explicar Berlim para você, provavelmente eu pecarei. Ora por ser demasiado hipérbole, ora por esquecer dos infinitos detalhes que compõem esse lugar. Tudo o que eu disser sobre Berlim vai parecer um exagero para você e muito pouco para mim.
Mas de todas as coisas que me fazem amar essa cidade como poucos lugares no mundo que já pus os pés (Berlim é a terceira vez) é sem dúvida a liberdade que ela exala em cada rua, em cada estação de trem, em cada praça…
Em minha recente visita a “Cidade da Liberdade”, eu pude finalmente entender os motivos que fazem de Berlim ser a cidade mais livre da Europa.
Câmbio.
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Foram nove horas de viagem entre Cracóvia, na Polônia, e Berlim, na Alemanha. A viagem demorou tudo isso por dois motivos: primeiro que as cidades ficam 600 km de distância uma da outra; segundo que fizemos esse trajeto de ônibus. E aqui vai uma dica gratuita: não espere muito dos ônibus da FlixBus.
Há um terceiro motivo pela demora: minha ansiedade. O tempo, segundo Einstein, é relativo e, segundo um apaixonado, quanto mais você quer que chegue algo, mais tempo isso vai demorar (e vice e versa). Eu estava ansioso demais, pois a última vez que estive em Berlim foi em 2014/2015, uma outra vida e um outro Felipe.


O que ficou daquela vida e daquele Felipe de dez anos atrás sobre essa cidade foi “apenas” o amor por ela. E o amor é tanto que nem a chuva e o frio indigestos de verão foram capazes de me desanimar. Eu estava em Berlim e nada iria estragar isso.
Ainda apegado à nostalgia de outros tempos, fiz questão de visitar a Catedral de Berlim como primeiro compromisso. Isso porque, na minha primeira visita à cidade, não quis entrar na igreja (uma das mais lindas da Alemanha) por custar, na época, € 5,00. Na segunda vez, ela estava fechada para reformas. E eu nunca me perdoei por não ter entrado. Precisava resolver isso.
Nada mais apropriado do que se redimir de um pecado dentro de uma igreja, certo? E eu ainda não estava satisfeito, precisava espiar mais a minha culpa por ignorar aquela beleza arquitetônica do início do século XX. Subi 270 degraus para, se não estar mais perto do céu, desfrutar da segunda melhor vista da cidade (a primeira é da Torre de TV que eu já tinha subido na última vez que estive em Berlim). E mesmo com o dia cinza e chuvoso, era como estar no paraíso.


Existem duas grandes feridas abertas em Berlim e todos sabem quais são: o nazismo e o Muro. Diferente das duas outras oportunidades, dessa vez eu queria olhar profundamente para esses machucados.
Foi aqui que a Segunda Guerra Mundial acabou. Os soviéticos entraram como faca quente na manteiga em uma Berlim que já não conseguia resistir. Nas entranhas da cidade, Hitler dava os acordes finais da sua sinfonia macabra tirando a própria vida em seu bunker na Gertrud-Kolmar-Straße, quase que colado com local onde seria construído anos mais tarde o memorial do Holocausto.
Mas antes de acharem o corpo do füher carbonizado (Hitler não queria ser um troféu de guerra como Mussolini e ordenou que seu corpo fosse queimado), os soldados aliados destruíram Berlim quase que por completo com os bombardeios e a “Batalha de Berlim”, protagonizada pelo exército vermelho, finalizou a destruição.
Antes disso, porém, o regime nazista fez de toda Alemanha uma ditadura e por se tratar da capital, Berlim sofreu o suficiente com a repressão. Na Wilhelmstraße há um museu chamado “Topografia do Terror” que fica onde antes era o quartel general da da Gestapo (Polícia Secreta Nazista). Colada com resquícios do Muro, é possível ver o quanto o nazismo castigou a cidade e seus cidadãos que queriam se ver livres do fascismo alemão. Um exemplo disso é a história do casal Elise e Otto Hampel que foram decaptados após serem pegos distribuindo cartões postais por Berlim no qual denunciavam o nazismo.
Só que Berlim teve que passar pelo inferno algumas vezes antes dessa condição paradisíaca.
Mas se você procurar resquícios do nazismo em Berlim vai encontrar em museus e em algumas ruínas da Segunda Guerra. A ferida é exposta, mas dói mais na alma do berlinense do que nas ruas ou ruínas da cidade. Um monumento importante à memória do horror nazista é o Memorial do Holocausto, um espaço ao lado do portão de Brandemburgo com cerca de 19.000 metros quadrados e com 2711 blocos de concreto que formam corredores irregulares e claustrofóbicos. Uma lembrança mórbida, como deve ser.
E poucos metros na frente desse espaço, a maior cicatriz da cidade: uma linha dupla de paralelepípedos lembrando por onde o Muro de Berlim passava. Resultado das disputas geopolíticas da Guerra Fria, o muro, construído em 1961, foi mais um soco na liberdade berlinense recém conquistada pós nazismo.

Por onde você andar, vai encontrar aqui ou acolá um resquício do Muro. Placas de concreto com cerca de 3,60 metros de altura e muito sangue derramado. Não foram poucos o que tentaram atravessá-lo do lado comunista para o lado capitalista.
Ao sudeste do centro da cidade, há a East Side Gallery. Com cerca de 1,3 quilômetros de extensão, o Muro de Berlim ainda preservado se tornou a maior galeria de arte a céu aberto do mundo, onde artistas do mundo todo tiveram um pedaço do muro para deixar sua arte. Uma delas sempre me chama a atenção: “Curriculum Vitae”, da berlinense Susanne Kunjappu-Jellinek. Na pintura, os anos nos quais o Muro ficou em pé e quantas pessoas morreram tentando atravessá-lo.

Um passeio que vale muito a pena fazer é o que te leva a conhecer as rotas de fuga que os alemães orientais faziam por túneis. Nos primeiros anos da construção do Muro, muitos encontraram no subterrâneo o caminho para passar para o lado ocidental. Nesse tour, é capaz de ver alguns túneis inacabados e visitar bunkers que foram usados tanto como refúgio durante a Segunda Guerra, como rota de fuga durante a Guerra Fria.
O Muro tinha uma função muito lógica: impedir que os alemães do lado comunista tivessem contato com o lado capitalista. A repressão do lado oriental era proporcional ao medo do governo soviético de ver sua propaganda cair por terra graças ao desejo de seus cidadãos alemães por acesso ao capitalismo que ficava cada vez mais atraente.
Visitamos o museu da DDR (República Democrática Alemã) que mostra com perfeição como era viver do lado comunista. O que eu pude constatar é que a vida do berlinense oriental não era de todo ruim, mas faltava um componente importante no imaginário coletivo: liberdade.
Mas hoje, Berlim se curou. É chamada por muitos de “Cidade da Liberdade” pois aqui você pode ser livre para ser quem você realmente é, independente do seu estilo, crença, sexualidade, inclinação política. Berlim te convida a caminhar livremente por ela.
Eu e Carol fomos visitar o Check Point Charlie, uma espécie de fronteira imigratória que funcionava na Guerra Fria para controlar quem entrava ou saia entre as Alemanhas Oriental e Ocidental. É um ponto importante da cidade que atrai milhares de turistas, mas justo no dia que visitamos o local, demos de cara com uma manifestação pró Palestina. Foi bonito ver o quarteirão todo tomado por gente do mundo inteiro (lembre-se, Berlim é cosmopolita) empunhando a bandeira palestina e gritando “Viva, Palestina. Viva!”.

Dias depois, a Carol descobriu que haveria a parada do orgulho LGBTQIAP+ na capital alemã. A manifestação mais colorida do mundo terminaria na avenida mais simbólica da cidade, a rua 17 de julho (que liga a Coluna da Vitória ao Portão de Brandemburgo). Claro que fomos acompanhar e vimos a liberdade acontecer diante dos nossos olhos mais uma vez.

Tudo bem que não é uma exclusividade da capital alemã, mas aqui o transporte público é inigualável. Você tem pelo menos quatro opções diferentes para chegar em algum ponto da cidade. Trem, metrô, bondinho e ônibus. Além das múltiplas opções, o transporte é sempre muito rápido. É raro ver vagões lotados. Se um trem estiver cheio (o que é raro), basta esperar por uns cinco minutos para pegar o próximo.
Inclusive, ter carro em Berlim é um luxo. Moradores e turistas abusam do transporte público e dos passeios a pé. Eu e a Carol, por exemplo andamos uma média de 12 quilômetros por dia. A cidade foi feita para o pedestre.
Isso me faz lembrar de Walter Benjamin. O pensador berlinense apresentou ao mundo o conceito do “Flâneur”, ou em outras palavras, do sujeito que passeia pela cidade. Já parou para pensar que não “passeamos” mais? Sabe aquele andar descompromissado pela cidade, sem pressa, parando a cada ponto interessante para simplesmente observar? Era isso que Benjamin quis dizer.
E eu, obediente ao mestre, resolvi “flanear” por Berlim. Fui sentir a cidade, observar e ser absorvido por ela. Fui até a Alexander Platz e seu caos particular à sombra da torre de TV, peguei o metro até o Zoologischer Garten para rever a estação que inspirou o U2 em uma de suas canções, caminhei pela Kurfürstendamm para ver as pessoas elegantes caminhar com suas sacolas. Terminei no Mauerpark em uma feira livre com centenas de barraquinhas de artistas independentes e vendedores de bugigangas.
Mas antes de todo esse passeio (que deixaria Walter Benjamin orgulhoso), eu parei por alguns minutos em um banco que tinha uma vista linda para a estação principal da cidade. Na minha frente, um pequeno canal do Rio Spree, sobre ele, a ponte de trilhos no qual deslizavam os trens. Ali havia alguns pássaros, pássaros alemães. E eu pensei na minha própria condição.

Eu sempre desejei ser alemão. Não é síndrome de vira-lata, amo o Brasil. Mas eu não sei explicar esse sentimento que tenho por esse país europeu, eu só sei que eu queria ser livre para fazer parte dele. Toda vez que venho para a Alemanha eu volto com um gosto agridoce de querer ficar aqui para sempre. Mas não ser alemão dificulta tudo… então eu olhei para os pássaros. Para um em particular e observei ele ali, vivendo, tomando o sol da manhã e, sem aviso prévio, batendo asas e voando sabe-se lá para onde.

O pássaro alemão
O pássaro
Não sabia que era Alemão
Voava livre
Voava na contramão
Por ser livre
Não precisava ser Alemão
Por não saber que era Alemão
Podia ser pássaro
Livre para voar
Para qualquer direção.
(Felipe Schadt)
Berlim vale a viagem.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é Conquista!
-FS





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