Diário de Bordo #29 - "Eu vos declaro Paraninfo e 9ºA"
- Felipe Schadt

- 12 de nov.
- 7 min de leitura

"É casando que se aprende". Frase dita por mim 100% das vezes quando me perguntam se eu me casaria outra vez. Mas o casamento que me refiro aqui é aquele cheio dos rituais, véu, grinalda, buquê, padre e chuva de arroz. Já tive essa experiência na minha vida e uma só está de bom tamanho.
Eu só não contava com a astúcia e ousadia dos meus alunos e alunas do 9º Ano A da The Joy School. Era o fim da manhã de uma quarta-feira de fim de bimestre e a escola vivia a atmosfera das homenagens e despedidas. Eu não havia sido lembrado até eu ir para a última aula do dia. Duas alunas me esperavam na porta acompanhadas da secretária e de uma moça marketing do colégio - que por sinal é minha aluna na faculdade - com celulares nas mãos registrando a minha chegada.
"Sor, o senhor só pode entrar na sala se usar isso", disse uma das alunas me estendendo a mão e me entregando algo que eu jamais pensei que usaria. A outra aluna também complementou o figurino com um adereço indispensável para a ocasião que eu estava prestes a vivenciar. Aceitei, desconfiado, mas de bom grado.
De véu e uma coroa de flores na cabeça e buquê de flores feitas de papel colorido nas mãos, tive minha passagem autorizada para o meu próprio casamento.
Câmbio!

A Filosofia ficou fora do currículo escolar por 37 anos (de 1971 a 2008) e voltou a ser obrigatória graças a lei sancionada pelo então presidente em exercício José Alencar (vice-presidente de Lula). Em 2018, houve um flerte do Ministério da Educação em retirar de vez a matéria do currículo escolar, foi o que propôs a terceira versão da proposta enviada ao Conselho Nacional de Educação (CNE). Por fim, em 2024, após resistir às tentativas de eliminação, a Filosofia nas escolas enfrentou a nova reforma do ensino médio e se manteve obrigatória, mas a Lei 14.945 não definiu a quantidade mínima de aulas, o que abriu espaço para reduções nas redes estaduais.
Na contramão dessa realidade, em uma das escolas que eu leciono - a The Joy School -, a disciplina de Filosofia está presente a partir do 6º Ano do Ensino Fundamental. Para minha felicidade, a Filosofia aqui é valorizada e quando eu fui contratado, no início de 2025, eu imaginava que seria um desafio e tanto ensinar a arte de filosofar para pré-adolescentes. Minhas primeiras aulas, numa terça-feira, foram com as turmas do 8º Ano e do 9º Ano B. Mas foi só no dia seguinte que eu encontraria a turma que me ensinaria algo que jamais vou esquecer.
Espertos no raciocínio, sagazes nos debates e inteligentíssimos na hora de organizar o pensamento. Foi a turma que, logo de cara, entendeu a minha dinâmica de abertura: eu sentado em silêncio na frente da sala esperando por perguntas. Não precisei esperar muito, a curiosidade dessa turma se mostrou latente e afiada. Acho que nunca respondi tantas coisas sobre mim como naquele dia.
Isso foi fundamental para ali, logo na primeira aula, estabelecermos como iríamos conviver. Sabe quando o santo bate logo de cara? Bateu! Eu gostei deles e, tenho a impressão, de que eles também gostaram de mim logo de cara. Não sei, um dia eu pergunto para eles se minhas impressões estão corretas.
Discutimos sobre as origens do universo, refletimos sobre o nosso lugar no mundo, debatemos sobre qual a conduta é boa e se o que vale é a intenção… E fizemos tudo isso na moral. E na moral? Como eu amei cada instante com essa turma. Mas nosso relacionamento ganharia um novo status e iria para outro patamar.
O 9º B já tinha escolhido sua paraninfa e seu homenageado com festa e cartazes. O terceirão armou até vídeo para convidar seus professores escolhidos. Faltava o 9ºA, a turma que eu adorava (agora posso dizer, um pouco mais que as outras). Confesso que fiquei apreensivo para a escolha deles e eu, embora tenha percebido alguns sinais que um ou outro aluno deixou escapar como “Professor, só pra saber, você é bom em fazer discurso para muita gente?”, tentei não criar expectativas. Quis o destino que eu tivesse que esperar até a última aula do dia para ter a minha resposta.
Na entrada da sala deles, duas alunas me esperavam com alguns adereços nas mãos. Um véu, uma coroa de flores e um buquê artesanal feito de papel colorido. Entrei no jogo, vesti os adereços e fiz o papel de noiva em um casamento surpresa. Assim que eu pisei na sala, a Marcha de Lohengrin, de Richard Wagner - que você conhece como marcha nupcial -, saiu das caixas de som da sala em alto e bom som e um dos alunos me esperava com o braço estendido para me acompanhar na minha entrada triunfante.
Eu estava feliz de estar onde eu estava, com quem eu estava e ter aceitado o pedido que me foi feito.
Na nave - corredor típico das igrejas - improvisada pelos alunos, um caminho de papel branco picado, em clara referência a pétalas de flores, forrava meu caminho até um altar feito de duas carteiras cobertas por um tecido de TNT branco. Neste altar, um livro de literatura grosso o bastante que simulava uma bíblia estava nas mãos de um aluno vestido de padre. Outro aluno me esperava ali na frente para representar a turma a qual eu estava prestes a me “casar”.
O aluno-padre leu um discurso muito bonito que falava do quanto professor e turma se conectaram nesse ano letivo, além de deixar claro o quanto eles aprenderam comigo. Isso só reforçou a minha impressão de que eles também gostaram de mim logo de primeira. No fim do discurso, a pergunta clássica dos ritos matrimoniais, mas com a adaptação justa ao momento. “Sor Felipe, o senhor aceita ser o paraninfo do 9ºA?”.
Eu respirei fundo e sem nenhuma dúvida eu respondi “Eu aceito”. Mais papel picado e festa na sala. E eles levaram o pedido a sério. Tive que assinar um termo, igual os noivos fazem no cartório assim que dizem sim um para o outro. Eu não precisava do “documento” para levar aquele pedido muito a sério e para responder mais sério ainda.

Treze anos na sala de aula esperando por esse momento, pelo dia que eu teria um pedido feito assim, com festa, amor e dedicação. É bem verdade que eu tive um pedido desses há algumas semanas atrás com o pessoal do terceirão do outro colégio que dou aula, mas com eles eu fui escolhido Patrono. Aqui, com a turma do 9º Ano eu estava sendo escolhido e convidado pela primeira vez para ser Paraninfo. Isso significa que, pela primeira vez em 13 anos na sala de aula, terei a oportunidade de discursar para os meus alunos. Para um exibido como eu, um baita troféu!
Eu estava resistindo bem toda àquela festa armada para mim. Estava levando na brincadeira e me divertindo muito com meu vestido de noiva. Mas aí eu resolvi falar… Quando eu ouço, eu consigo me concentrar e manter a emoção sob controle. Quando eu falo, eu me concentro nas palavras dando espaço para minhas emoções tomarem conta de mim. Não deu outra. Comecei a falar uma ou outra coisa para eles. Uma mensagem de agradecimento e minha explicação sobre a saudade que sentirei dos momentos que tivemos juntos. Mas a coisa toda desandou quando eu olhei para alguns alunos e vi seus olhos marejados… Poxa… Eu não podia ter visto aquilo.
Chorei muito ao dizer o quanto eu estava feliz por aquele momento e o quanto eu sonhei com aquele dia. Será que é assim que as noivas se sentem quando choram em seu casamento? Não sei, mas o que eu sei é que eu estava feliz de estar onde eu estava, com quem eu estava e ter aceitado o pedido que me foi feito.
Kant nos ensina sobre o imperativo categórico que, nada mais é, do que o dever. O que devemos fazer para que nossa conduta seja considerada boa? A explicação rápida é: “Faça para os outros exatamente o que você gostaria que fizessem para você”. Eu gosto de dizer que eu dou a melhor aula do mundo, não porque ela é de fato a melhor aula (e para saber se minha aula é a melhor aula do mundo eu teria que saber como todas as outras aulas dadas no mundo são). Mas pelo fato de eu dar a aula que eu gostaria de ter se eu estivesse sentado na carteira no lugar deles.
Nessa aula eu perguntei para a turma: “Vocês são os alunos que gostariam de ter caso vocês fossem professores?”. Eu não lembro o que eles responderam, mas eu sei a resposta. Sim, eles são os alunos que qualquer professor no mundo gostaria de ter e que sorte a minha ter sido um desses professores. E essa foi a lição mais valiosa que aprendi com eles. Vivi uma das filosofias mais bonitas de todas na prática graças a essa turma e vi essa turma viver essa maneira de enxergar a vida junto comigo. E na moral, isso mudou para sempre o meu mundo.
Só tem um problema muito sério nisso tudo. Agora, toda vez que eu entrar numa sala de aula vou esperar encontrar a Ana Beatriz Rigolo Melo, a Ana Clara Lima Modesto, o Arthur Cardoso Martins, o Arthur Dantas Madeira, a Beatriz De Almeida Coppini, a Beatriz Miranda Rezende, a Clara Bianca Santos Paulino, o Davi Martinelli Da Silva, o Enzo Fernandes Famelli, o Gabriel Kirizawa Piva, o Gustavo Campos Ohashi, o João Paulo Camargo Olivieri, o João Vitor Da Silva Mello, a Lívia Rissi Annunciato, o Luca Denevi, o Lucas Flôres Travaini, a Manuela Gregório Perchon, a Maria Eduarda Vasconcelos Roveri, a Maria Luiza Almeida Pedroso, a Pietra Andreotti Gonçalves, o Vitienzo Zulianello e a Vitória De Araújo Kishimoto. Ou seja, o 9ºA.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é conquista
-FS






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