Diário de Bordo #27 - Não dá para projetar o mundo com slides
- Felipe Schadt

- 13 de ago.
- 5 min de leitura

Estava almoçando quando resolvi dar uma espiada no celular. Descobri ali, em uma mensagem, que alguns alunos estavam bravos comigo. Na verdade, descobri que eles estavam bravos com a “nova” configuração das minhas aulas que consiste em não ter mais slides.
É. Eu não gosto de slides. Uso em raríssimos casos em aula. Eu acho que o slide enquadra o pensamento e limita a capacidade de síntese. Quero dizer que com os slides na tela, o meu aluno fica confortável o suficiente para não pôr a cabeça para trabalhar a partir da minha explicação. “Já tá tudo mastigadinho nos slides”, é o pensamento instintivo do estudante que se nega a estudar.
Quando eu dei a notícia, na semana anterior, de que não teríamos mais slides e minha aula seria a do jeito que me sinto à vontade: eu, minhas anotações no meu caderno e meu gogó, o lamento foi quase generalizado. Há muitos anos que dou aula assim e há muitos anos que esse método funciona. Mas eu teria que encarar o descontentamento de parte da turma, a minha sorte é que o tema da aula iria me ajudar a convencê-los de que os slides mais atrapalham do que ajudam.
Câmbio.
.
Cheguei na sala e o clima era de certa tensão. Falo por mim, óbvio. Passei a tarde toda, desde o momento que eu recebi a notícia do descontentamento de alguns alunos sobre minha escolha de dar aulas sem slides, pensando em respostas que eu poderia dar para eles.
Pensei em dar um sermão da montanha logo de cara. Fazer a linha do professor duro e rígido. “Vocês acham que estão onde? Isso aqui é faculdade! Tenham culhões e entendam de uma vez por todas que se vocês não botarem a bunda na cadeira e não estudarem igual gente grande, vocês não vão passar!” Esse discurso não combina nada comigo. Desisti na hora.
Imaginei eu sendo irônico e debochado. “É gente… a faculdade não é para qualquer um, não. Entendo que para alguns estudar é muito difícil e que quanto mais mastigado o conteúdo estiver melhor. Nem todo mundo é do ramo e eu entendo.” Também não faz meu estilo.
Conjecturei dar uma de indignado. “É um absurdo alunos de uma faculdade ficarem bravos porque um professor não quer usar slides. É por isso que a educação brasileira é mambembe. Muita preguiça e covardia.” Piegas e bem rude. Desencanei.
Decidi não falar nada. Deixar eles pensarem o que quiserem de mim, afinal de contas, não posso controlar como o outro me vê ou se sente em relação às minhas escolhas. “Eu estou nesse negócio de dar aulas há 13 anos… já deveria estar mais do que acostumado com esse tipo de descontentamento.”
No fim, ali na hora que todos se acomodaram na sala 27 do prédio 1, eu resolvi improvisar. “Senhores, eu me compadeci.”, vários rostos se iluminaram e vozes cochichantes diziam “Slides… slides”. Continuei: “Eu prometo que toda vez que eu usar slides em aula, eu compartilho com vocês. Hoje por exemplo, não vou utilizar nenhum. Mas quando eu usar, prometo que compartilho.” E continuei explicando: “Quando eu não uso slides eu forço vocês…”, uma aluna me interrompeu completando a minha frase: “… a estudarem, porra!”. Eu não ia dizer exatamente assim, mas agradeci o complemento ligeiro e certeiro.
Abri meu caderno e comecei a minha aula. Fluiu como de costume. Eu, meu caderno e meu gogó fizemos nosso trabalho e as atenções ficaram presas ao assunto: fenomenologia.
“O mundo é a nossa interpretação da realidade”, expliquei. Pense comigo: quando passamos pela Revolução Cognitiva, momento que passamos a entender que o mundo está fora de nós e que portanto existe algo além da gente a ser observado, descobrimos que a realidade não pode ser alcançada em sua totalidade. Quero dizer que o que vemos é resultado do que o nosso cérebro - uma espécie de filtro - interpreta. Nós, a cada encontro com o mundo, criamos uma imagem da realidade.
Essa imagem, por sua vez, é mental, subjetiva e abstrata. Mental porque acontece só na nossa mente de maneira inédita, particular e irrepetível; subjetiva porque nossa interpretação do mundo vai depender de inúmeros fatores nada objetivos que nos constroem como indivíduos; abstrata porque não conseguimos, nem com todo esforço existente, descrever com exatidão o nosso encontro com o mundo.
Talvez o amor seja a tentativa de enxergar o mundo do outro e aceitá-lo como ele é
Foi nesse momento que a aula começou a flutuar. Mãos nervosas começaram a subir das carteiras e pedir a palavra. O debate foi tão profundo que basicamente foi uma sessão de terapia coletiva. Mas deixa eu explicar um pouco sobre nossas reflexões.
A imagem mental que fazemos da realidade é inédita por quê? Porque todo encontro que temos com o mundo é sempre a primeira vez. Transformado pelo próprio mundo, eu já não sou o mesmo na hora de um novo encontro. É aquele papo do Heráclito de ser impossível entrar no mesmo rio duas vezes. Isso nos leva a pensar que, por ser sempre a primeira vez, os encontros com o mundo nunca irão acontecer de novo, por isso são irrepetíveis.
A irrepetibilidade dos encontros nos leva a pensar que estamos vivendo em um estado constante de morte e vida. Se todo encontro é o primeiro, ele também é em certa medida o último. Sabe aquele abraço que você deu no seu amigo? Aquele abraço nunca mais vai se repetir. Os abraços que você dará no seu amigo serão momentos únicos que nunca mais acontecerão outra vez. Você está lendo esse texto pela última vez. Se você ler ele novamente, será uma nova leitura.
Por fim, a imagem mental que fazemos da realidade é particular. Ninguém pode ver o mundo como você vê. E por mais que você tente se esforçar, nunca conseguirá entender o mundo do outro. Talvez o amor seja a tentativa de enxergar o mundo do outro e aceitá-lo como ele é. E o quanto é difícil fazer isso, pois o nosso impulso é mostrar e impor o nosso mundo para o outro.
“Imagina se vocês estivessem tendo essa aula com slides? Vocês não estariam vendo o mundo que só vocês podem ver…”, disse. “Nós estaríamos acatando o seu olhar sobre o mundo, né professor?”, completou um aluno atento. Mais um argumento contra os slides.
Mostrei então meu caderno recheado de informações que usei na aula. Essas anotações nesse mesmo caderno eu tirei de uma aula no mestrado na USP. A aula em questão era sobre Linguagens, da professora Maria Cristina Castilho Costa, que também não usava slides. “O recorte que eu fiz da aula que eu assisti é só meu, pois a professora me deu a oportunidade de que eu interpretasse as informações que ela trouxe”, reforcei. “Eu não teria essa capacidade de reflexão sobre esse assunto se ela tivesse usado slides e eu copiado exatamente o que estava projetado”. Outro argumento.
Fim de aula. Aplausos tímidos, mas aplausos. Acho que eles começaram a entender o valor de ver o mundo a partir dos próprios olhos.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é Conquista!
-FS





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