>Desde que eu me entendo por gente, ou seja, lá pelos três anos de idade, eu tinha uma rotina muito regrada e, para mim, sagrada. Eu acordava muito cedo, antes das 06 da manhã e esperava pacientemente minha vó prender os cachorros no canil para que eu pudesse descer até a casa dela. Eu e meus pais morávamos na casa de cima do terreno onde meus avós viviam. Então, eu cresci com a presença deles.
Assim que eu a ouvia chamar os cachorros para dentro, eu abria a porta correndo e descia para encontrá-la. "Benção, vó", dizia. E ela sempre respondia: "Deus o abençoe, meu filho" acompanhado de um abraço apertado e um "chero" no meu cangote que sempre me fazia gargalhar. Depois desse ritual, íamos até a padaria do outro lado da rua comprar pão, mortadela, um saquinho de leite e, se eu tivesse sorte, algumas balas. O seu Mané, padeiro do bairro, anotava tudo na caderneta azul da minha vó para que, no final do mês, meu vô fosse lá acertar a conta.
Voltávamos para casa e enquanto meu avô varria a calçada, eu ligava a TV para assistir Vovó Mafalda e a minha vovó, a Antônia, preparava o café da manhã. A minha rotina sagrada de início de dia que fazia a minha vida ter todo o sentido necessário.
Uma vez, essa rotina foi quebrada. Eu não saia com os cachorros soltos, afinal, eu era uma criança e os cachorros eram grandes o suficientes para arrancar um pedaço do meu corpo com uma só dentada. Eu posso jurar até hoje que ouvi minha vó chamando os cachorros para dentro naquela fatídica manhã. E como de costume, sai da minha casa, fui até o quintal da minha vó e desci correndo até a porta da sala. Quando eu olho para o lado, lá estava ele, um dos cachorros que, ao perceber minha presença deu um latido. O suficiente para eu fazer um verdadeiro escândalo. Não sei como consegui correr, só sei que ali eu venceria facilmente uma prova de 100 metros rasos categoria dente de leite.
O que mais me chateou não foi o fato do susto em si, mas a minha rotina que havia sido quebrada. Minha vó não tinha acordado ainda e eu tive que esperar, assistindo telecurso 2000 na TV da sala de casa. Nesse dia, por causa do meu choro e chateação, a ida a padaria foi muito feliz. Junto com os pães, a mortadela e o saquinho de leite, minha avó deixou eu escolher qualquer um dos doces dispostos na vitrine. Fiz a escolha óbvia: guardachuvinha de chocolate! Ganhei uns cinco e a generosa quantia de dez balas de leite Kids. O Natal havia chegado mais cedo. Eu só olhei para a Dona Antônia com muita ternura e falei: "Obrigado vó". Ela só sorriu.
Minha vó sempre foi uma unanimidade no nosso bairro. Todo mundo conhecia a Dona Antônia. Ela era uma pessoa muito engajada na comunidade por causa da igreja e se tinha uma coisa que minha avó fazia era ajudar todo mundo! Sem exageros! Na época, meus avós eram uma das poucas pessoas na vizinhança a ter um telefone e um carro, o que fazia da casa deles o orelhão oficial do bairro e o carro do meu avó a ambulância oficial da rua. Não era raro ver minha vó chamando meu avó as pressas para socorrer alguém ou ver estranhos entrando e saindo da sala após usarem o telefone para alguma emergência.
Além disso, minha vó sempre descobria sobre as necessidades dos vizinhos. Se alguém estivesse com dificuldade para arranjar comida, ela mobilizada o bairro todo para ajudar. Se alguém não tinha condição de comprar material escolar para os filhos, lá ia Dona Antônia atrás de pessoas que podiam ajudar. Se alguém precisasse de qualquer coisa, o bairro todo sabia que poderia contar com ela.
Isso ajudava minha vó em seus negócios. Conhecer todo mundo e ser solícita, faz de você uma pessoa bem quista. E ela, vendedora de produtos de catálogo, tinha passe livre na casa de quase todo mundo para oferecer os seus produtos. Ela era uma excelente vendedora e eu ficava impressionado com a quantidade de caixas que meu avô tirava do porta-malas com centenas de produtos que ela tinha vendido. Ter uma avó que vende cosméticos tinha lá suas vantagens. A primeira era que ela ia a pé entregar suas vendas e sempre que dava, me levava e eu sabia que, na volta, pararíamos na padaria para eu escolher alguma guloseima. A outra era que eu era viciado em cheirar as fragrâncias que vinham nas páginas dos catálogos e, os antigos, ficavam pra mim.
A casa da minha vó vivia cheia de gente. Ou eram suas clientes ou eram as suas amigas da igreja - que na maioria das vezes também eram suas clientes. Muito católica, Dona Antônia organizava os famosos terços em sua casa. Umas dez mulheres rezando em uníssono "Ave Maria Cheia de Graça..." Eu aprendi a rezar assim. Muito antes de entrar na catequese, eu ja manjava dos paranauês cristãos o que me fez ser um prodígio nas aulas da primeira comunhão.
Mas nada representava mais a minha avó do que suas plantas. O quintal dela era apinhado de todo tipo de espécie de planta que você possa imaginar. Era uma flora de dar inveja a muita floresta por aí. O amor e dedicação que ela dispunha para cuidar do seu jardim era proporcional a raiva que ela sentia quando eu e meus primos quebrávamos alguma planta jogando bola. Ela ficava pistola da vida quando via um galho de qualquer coisa quebrado. Mas a raiva passava antes do café da tarde ser servido.
O problema é que minha avó, hoje, não pode mais se lembrar de nenhuma dessas histórias. Ela, com os seus 80 anos, sofre há quase dez com o mal de Alzheimer. Minha avó tem apenas lapsos de memória, a maioria deles, da sua própria infância. Ela não se lembra dos cachorros que ela prendia no canil toda manhã, não se lembra do seu Mané da padaria e nem do que ia comprar lá, não se lembra das pessoas que ajudou na vida, nem dos produtos que vendia e tão pouco das plantas que foram quebradas. Minha avó, infelizmente, não se lembra nem de mim.
Quando a vejo vou logo dizendo: "Benção, vó!" E ela responde fraquinho... "Deus abençoe, meu filho". Completo dizendo, "me da um chero", e ela sorri e cheira meu pescoço como sempre fazia. Eu sei que ela não tem consciência, faz por talvez uma memória física, mas pra mim isso basta. Depois disso, ela me olha e tenta fazer alguma conexão. Eu to tão diferente do que eu era quando não passava de um fedelho. "Sou seu neto, vó. O Felipe". Quando muito, ela acha que sou o marido da filha dela, ou seja, meu pai. Eu não contrario... assumo o papel que ela me deu e sigo o jogo.
Na última vez que eu fui visitá-la, resolvi tentar bater um papo com ela. Tive que ler, para o mestrado, muita bibliografia sobre história e memória e muitos autores concordam com a importância da memória das pessoas mais velhas para a manutenção da história. Eles sugerem alguns exercícios para estimularmos os velhinhos e velhinhas a se lembrarem de algo. Resolvi estimular a memória da minha avó perguntando situações da sua infância. Ficamos quase uma hora papeando trafegando por assuntos que dispersavam com a mesma facilidade que surgiam. Como ela não consegue estabelecer muitas conexões, a conversa mudava de ruma muitas vezes. Mesmo assim, foi legal.
Então eu falei:
- Vó, sabia que semana que vem é meu aniversário?
Ela olhou pra mim e ficou parada me encarando. Deixei o silêncio falar por nós. Uma lágrima escorreu ligeiro dos olhos dela sem aviso prévio.
- Por que a senhora tá chorando, vó?
- Você é tão bonito! Tá tão crescido.
E ali eu soube que ela se lembrou de mim. Foi só por um instante, eu sei, mas o suficiente para eu saber que o Felipe pode não habitar mais o cortex pré-frontal do cérebro da Dona Antônia. Mas que ele habita ali, no coração daquela velhinha simpática.
Ao me despedir, eu disse que voltaria para tomar um café. Ela sorriu e disse que ia fazer café pra mim. E eu vou voltar, até quando der, para tomar café na casa da minha vó.
A vida é crônica. -FS
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