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  • Foto do escritorFelipe Schadt

O menino preto da minha rua


As vezes esqueciamos o seu nome de tanto chama-lo de "Neguinho" (Imagem: Pixabay)

> "O racismo não está piorando, ele apenas está sendo filmado”, essa frase assustadoramente verdadeira foi dita por Will Smith logo após o caso George Floyd ter parado Minneapolis, nos EUA. Uma semana depois do assassinato do menino João Pedro no complexo do Salgueiro, Rio de Janeiro. Os dois casos tem muitas coisas em comum… Infelizmente.


Duas pessoas pretas mortas pela polícia. A primeira, sufocada até a morte por um policial que esmagava seu pescoço com o joelho e que não o ouvia dizer: “Eu não consigo respirar”; A segunda, um menino de 14 anos de idade que estava dentro de casa e que foi alvejado pelas costas enquanto praticava o isolamento social com a família.


Em ambos os casos a internet teve papel decisivo no desfecho. No caso do norte-americano, imagens dele sendo agredido pelo policial ganharam as redes quase que de maneira instantânea; no caso do brasileiro, mensagens no Twitter de um dos familiares alertaram os internautas sobre o que tinha acabado de acontecer.


E aqui chegamos na única coisa que difere os dois casos. A população de Minneapolis foi para as ruas atear fogo em prédios públicos e protestar contra o assassinato de George Floyd. Já na cidade carioca, mesmo com a revolta vista na internet e uma comoção generalizada, as manifestações ficaram nas redes sociais com fotos e homenagens a João Pedro.


Comecei a pensar sobre isso e te convido para filosofar junto comigo do porque nossa revolta contra o racismo é assim… tão tímida. E para isso, eu vou contar uma história.


Quando eu era criança, cresci numa rua cheia de vida. Casas, uma padaria, uma papelaria e muitas crianças. Todas na mesma faixa etária. Esse fato fez com que a minha rua fosse uma das mais animadas da história do planeta Terra. Brincávamos todos os dias e de todas as coisas imaginadas por um grupo de crianças hiperativas.


Lembro bem dos meus amigos. E principalmente dos apelidos que cada um tinha. Eu era o “Monicão”, graças aos avantajados dentes da frente que mal cabiam dentro da boca; tinha o “Orelha”, por causa das orelhas grandes; o “Batata”, devido sua semelhança com um dos personagens dos Batutinhas; o “Bode”, que tinha como animal de estimação uma cabra; e o “Neguinho”, que era chamado assim por causa da cor de sua pele.


Eu usei aparelho por longos anos e corrigi os dentes, fazendo o “Monicão” cair em desuso. Já o menino com a orelha grande, deixou o cabelo crescer, escondendo as orelhas e ganhando a atenção das meninas por causa das madeixas louras. O menino que parecia um dos Batutinhas assumiu o apelido e, a medida que o tempo ia passando e ele ia crescendo, sua semelhança com o personagem ai ficando cada vez menos evidente, nos fazendo entender que chamá-lo de “Batata” não fazia mais muito sentido. A cabra do “Bode” foi vendida um dia e a graça com o apelido havia acabado. Mas o “Neguinho”… Bom, ele não tinha como se livrar do apelido.


Naquela época, nada parecia mais natural do que chamar o amigo que era preto e baixinho de “Neguinho”. Que mal havia nisso? “Nenhum”, pensava. Era o que ele era. Um negro pequeno. E de tanto chamá-lo assim, as vezes esquecíamos seu verdadeiro nome. Lembro das pouquíssimas vezes que eu o ouvia. Isso acontecia quando um dos seus irmãos ou seus pais o chamavam para algum afazer. Demorou para eu refletir sobre o porquê ninguém da sua família o chamava pelo apelido que ele tinha na rua.


Além de chamá-lo de “Neguinho”, fazer piadinhas com a cor da sua pele era algo que eu achava muito comum. E parecia que ele não se importava. Bom… Ele até ria junto com a gente. Na verdade ele retrucava invocando nossos apelidos. Uma vez ele me disse:


Monicão, você usa esse dente aí pra abrir garrafa?


E eu respondi:

- Se eu usar aparelho meu dente volta ao normal! Já você vai ser preto pra sempre!


Todos riram. Menos ele. Minha risada durou pouco:

- To zoando, Anderson. - respondi nervoso chamando ele pelo nome em uma das raríssimas vezes.


Naquele dia, eu tive um despertar de consciência. Uma consciência ainda fosca, mas suficiente para eu entender que aquele apelido não era tão legal assim. Eu entendi que os apelidos que tínhamos na rua eram oriundos de características particulares que nos causavam vergonha. Características essas que poderiam ser concertadas pela tecnologia odontológica, capilar, fator tempo, questão econômica… Mas a característica do Anderson era completamente diferente.


Comecei a perceber que ele era o único que sofria com as piores piadas e que sempre eram sobre a sua pele. Toda hora que algo acontecia de errado com ele, era culpa de sua cor. Toda vez que aparecia uma viatura da polícia na rua, era pra ele que dizíamos para se esconder. Toda vez que sumia alguma coisa da rua, era para ele que olhávamos… Tudo era brincadeira para nós… Mas talvez não fosse para ele. Nunca perguntamos. Nunca nos importamos. Não fazíamos para machucar, mas não sabíamos se realmente machucava.


A medida que fui me questionando e buscando mais informações a respeito, a consciência foi aumentando e as piadas diminuindo. Hoje, jamais me permitiria chamar o Anderson de “Neguinho” ou atribuir a cor de sua pele qualquer coisa ruim. Na época, éramos só crianças que reproduziam o discurso que víamos na TV e das pessoas mais velhas, que também cresceram embebidas pelo mesmo discurso.


A diferença é que, felizmente, somos uma geração com acesso a todo tipo de informação e a tomada de consciência passa ser mais fácil. Mais, passa a ser urgente. Will Smith tem razão. O racismo não piorou, ele existe e é assim há muito tempo. Desde que o primeiro navio transportou o primeiro africano algemado, temos no imaginário coletivo de que a cor da pele determina quem vale mais ou quem vale menos. E durante séculos alimentamos essa teoria maluca e sem nenhum fundamento.


Algumas pessoas até tentaram usar a ciência para comprovar essa tese de que homens brancos são melhores do que homens pretos. Foi chamada de Eugenia e amplamente aceita no início do século 20 até meados dos anos de 1940. Essa pseudo ciência defendia a ideia de que, como no reino animal, na sociedade sobrevivem os mais adaptados. E quem eram considerados os mais adaptados? Os ricos. E quem eram os ricos? Os brancos que foram outrora donos de escravos. E já que os ricos eram os mais adaptados, quem eram os menos adaptados socialmente? Os pobres. E quem eram os pobres? As pessoas pretas.


Após a abolição da escravidão, homens e mulheres foram jogados para as margens da sociedade. Sem dinheiro e muito menos emprego, foram se amontoando e vivendo na pobreza extrema. Para a Eugenia, socialmente falando, pessoas pobres não conseguiram se adaptar na sociedade e era um risco deixar que esse tipo de pessoa se proliferasse. A ideia era simples… Deixe os ricos encherem o mundo de filhos e impeça os pobres de fazerem o mesmo. E eu acho que você entendeu onde isso vai chegar. Em um mundo só de pessoas socialmente adaptadas, ou seja, brancas onde não exista mais pessoas socialmente desadaptadas, ou seja, pretas.


Nós aceitamos muito bem essa ideia no Brasil. A Eugenia, palavra que significa, bem nascido, foi defendida por médicos, políticos e artistas da primeira metade do século XX. Inclusive houve no nosso país um plano de branqueamento social. A ideia, patrocinada por médicos eugenistas, visava trazer europeus brancos para o Brasil, oferecer a eles os trabalhos que os escravos recém libertos eram proibidos de exercer e fazer com que esses europeus tivessem filhos e filhas com as pessoas pretas para que, segundo as contas desses médicos, em 50 anos, o Brasil fosse 100% branqueado.


A gente engoliu esse plano e crescemos com a ideia de que branco é bom e preto é ruim. Já notou que todas as palavras que possuem as terminologias negro e preto remetem a algo ruim? Denegrir, mercado negro, a coisa tá preta, serviço de preto… Inclusive vejo muitas pessoas fazendo um esforço tremendo para eliminar essas expressões de seu vocabulário. Uma que aprendi recentemente é sobre o “CC”. Sabe aquele cheiro ruim que sai debaixo do braço? “CC” significa Catinga de Criolo.


Além disso. Tudo que é relacionado à cultura, religião e costumes dos povos africanos também são idealizados como sendo ruins. Já se perguntou o porquê cabelos crespos, característico de pessoas pretas, são considerados cabelos ruins? E as religiões africanas, então? Aposto que você já teve medo quando viu uma oferenda em alguma esquina por aí.


Brancos que nasceram e viveram em países no qual a escravidão foi tratada como normal por longos séculos, são racistas. Se você é branco e está me ouvindo agora, você, como eu, é racista. E isso é maior que você. Você nasceu cercado de racismo porque seus pais nasceram e cresceram cercados de racismo. É estrutural. Mas como eu disso ainda há pouco, você tem acesso a informação e pode refletir a respeito disso tudo que eu acabei de dizer.


Espero que a consciência sobre esse tema desperte em você do mesmo jeito que despertou em mim ao perceber que meu amigo era o que menos se divertia com as piadas sobre a própria cor. Precisamos escancarar o racismo. Filmá-lo e jogá-lo no meio da praça pública da internet para que todos vejam. Talvez assim você possa perceber que o caminho para acabar com o racismo é identificá-lo, admiti-lo para só assim poder curá-lo.


Desculpa, Anderson.

Conhecimento é Conquista

-FS

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