> Eu percebi que eu não sou livre. Nem para escolher o tema desse texto. E não, não possuo editores ou patrocinadores que me indicam sobre o que devo versar. Também não recebi indicações do público que me lê para que eu fale sobre esse ou aquele tema. “Mas se a ideia do tema não veio de fora, ora bolas, só deve ter vindo de você, portanto, você escolheu sim”, poderá dizer você. Bom, eu penso que não. Nem escolhi o tema livremente, nem ao menos fui livre para escolher escrever e tão pouco livre para decidir publicar. Tudo o que fiz e faço é resultado de uma rede de causalidades que me cerca. Como ensina Espinosa: a liberdade de escolha é uma ilusão.
Para você entender melhor a filosofia espinosana, terei que fazer um recorte, já que seria impossível explicar tudo o que pensou esse filósofo em um texto que tem como proposta não ser longo demais. E para que eu seja mais claro, serei obrigado a apresentar antes um contraponto, uma ideia contrária à ideia de Espinosa. E para discutirmos liberdade, o filósofo que pensa o contrário a ele é Aristóteles. E já que você está aqui, vem comigo até a Grécia antiga para desbravar a moral aristotélica.
Para o filósofo grego, moral é a possibilidade de deliberar livremente sobre uma ação contingente. O que ele quer dizer com isso? Que moral é refletir livremente sobre fazer ou não fazer alguma coisa. E assim que tomada a decisão, essa escolha deve ser contingente, ou seja, poderia ser outra a não ser a que você escolheu. Vou descomplicar com um exemplo.
Imagine que você esteja na última prova do semestre e, por conta das aulas online, você pode fazer toda a prova olhando as respostas no Google. Mesmo com a advertência do professor de que era proibido esse tipo de atitude, não há ninguém te vigiando e ao se deparar com uma pergunta que você não faz a mínima ideia da resposta você tem duas escolhas: colar e acertar a questão ou não colar e prejudicar sua nota. Essa deliberação segundo Aristóteles é livre, pois não há nenhuma interferência externa, não há professores ou ninguém te vigiando fazendo você escolher, obrigatoriamente, por não colar. Como você está liberto da fiscalização, você tem a chance de escolher livremente. Um diálogo entre você e você mesmo.
Para Espinosa isso jamais poderia acontecer, pois você nunca é livre para escolher, mesmo não tendo ninguém para vigiar a sua escolha. Nossa existência não é marcada pela contingência, ou seja, pela possibilidade de ser outra, como sugere o filósofo grego. Nossa existência, segundo Espinosa, está marcada pela necessidade. Isso significa que nossa existência só é como poderia ser.
Vamos pegar a mesma situação. Você está diante de uma prova online e não sabe a resposta de determinada pergunta. Você foi advertido pelo professor que não era permitida a cola e você está em um lugar que não há nenhum tipo de fiscalização. Duas opções são colocadas para você: colar e acertar a questão ou não colar e prejudicar a sua nota. A opção que você escolher, independente de qual seja, não poderia ter sido outra. Você foi condicionado a escolher a primeira ou segunda opção.
“Não, mas espera aí. Eu escolhi sim!”
Sim, você escolheu. Jamais neguei isso. O que Espinosa diria para você é: você não foi livre para escolher. E aí que está o ponto. Para o filósofo nós somos um ser natural, ou seja, um ser inscrito na natureza. Como leões marinhos, pardais, cogumelos, goiabeiras e bromélias, nós fazemos parte da natureza e, portanto, somos regidos pelas mesmas leis, regras e condições.
Se uma árvore cair, ninguém em sã consciência perguntaria: “a árvore escolheu cair?”. Não! A árvore caiu porque ela só poderia ter caído dada as condições. Imagine a cena. Você está dirigindo seu carro quando se depara com uma árvore caída no meio da via impedindo você de chegar ao trabalho. Você imediatamente tira uma foto do acidente, envia para o seu chefe e explica que chegará atrasado. Eu, com a ajuda de Espinosa, posso mostrar para você que assim como a árvore, você também não foi livre para escolher fazer o que fez, mandar a mensagem para o chefe. A árvore e você foram levados a fazer o que fizeram.
Na semana que a árvore foi plantada, há alguns anos, o jardineiro responsável se adoentou e deixou o estagiário ir sozinho atender a solicitação do prefeito que queria que aquela árvore fosse plantada exatamente naquele local. O estagiário não sabia que aquela árvore não era adequada para aquele tipo de solo. Ele não sabia dessa informação, pois seu professor de geologia responsável por explicar os tipos de terrenos adequados para determinadas plantas tinha se separado da esposa e, por conta disso, estava com muitas complicações para se concentrar na aula e ensinar seus alunos direito. Como não conseguia falar ao telefone com o jardineiro responsável e tinha medo de perder o estágio, o estagiário obedeceu a ordem do prefeito e plantou a árvore no local inadequado sem saber se era uma boa ideia.
Com os efeitos do tempo, da erosão do solo e da chuva que caiu na última noite, a árvore só poderia ter caído na estrada. Você, que tinha acabado de conseguir um emprego depois de dois anos desempregado, assim que viu o impedimento de seguir viagem com o seu carro, resolveu avisar seu patrão que chegaria atrasado, mas se lembrou que você só conseguiu um emprego porque o funcionário que foi demitido antes de você ocupar a vaga deixada por ele, só foi mandado embora pois mentia para o patrão deliberadamente sobre atrasos e faltas, tornando o chefe muito mais desconfiado. Sabendo disso, o relato verbal não seria suficiente, então você escolheu tirar a foto e enviá-la para evitar problemas.
Eu não sei se você percebeu, mas não existe diferença nenhuma entre você e a árvore. Vocês dois estão inscritos na natureza e não foram livres para escolher fazer o que fizeram. A árvore caiu porque, dadas as condições, ela só poderia ter caído. Você mandou a foto para o chefe porque, dadas as condições, você só poderia ter mandado a foto para o chefe. Por isso todas as ações presentes na natureza estão baseadas na necessidade: fez-se isso por causa daquilo.
E essa rede de causalidades é complexa demais para nós entendemos como ela é. Perceba todas as coisas que você fez e tente traçar a rede de causalidades que te levaram a fazê-las. Por mais distante que você tente chegar, nunca será o suficiente, pois para isso você teria que ter uma visão ampliada de todo o universo. A mais pequena ação no mais distante local te condicionará a fazer o que você só poderia ter feito. Se duvida disso, imagine se em 2018 eu dissesse para você que em dois anos você teria que usar máscara ao sair de casa por que um homem do interior da China resolveu comer um pangolim no jantar? A sua escolha em usar máscara pode ter começado com a ideia de jantar que esse chinês teve. E a ideia de jantar que esse chinês teve pode ter começado com uma antiga tradição oriental de centenas de anos atrás. E assim por diante…
É que nós, seres humanos, nos achamos especiais. Especiais ao ponto de acharmos que não fazermos parte da natureza como leões marinhos, pardais, cogumelos, goiabeiras e bromélias. E que essas redes de causalidades não nos afeta e que somos sim livres para escolher.
Espinosa é muito duro em sua resposta para isso. Para ele, homens que acham que são livres para escolher são ignorantes, pois ignoram as redes de causalidade porque não têm capacidade de entendê-la.
Se Espinosa não te convenceu de que o livre-arbítrio é uma ilusão, vou convocar outro filósofo. O alemão, Arthur Schopenhauer. Ele diz: você é livre para escolher o que quer, mas não é livre para querer o que quer. Ou seja, você pode até escolher entre colar ou não colar, mas nunca poderá escolher se você quer colar ou não quer colar. Esse seu querer é resultado de uma série quase que infinita de fatores que levaram você até esse momento. Essa seu querer é resultado de infinitas redes de causalidades que você, como já deve ter notado, não tem nenhum controle e nenhum entendimento.
Ah… E antes que você diga: “Então Espinosa acredita no destino!”… Eu sinto lhe informar, mas Espinosa se ofenderia com essa afirmação. Nada tem a ver com o destino. Não estava escrito nas estrelas que a árvore cairia na estrada e que você mandaria a foto para o seu patrão. Uma única variável poderia ter mudado tudo. Se o jardineiro responsável não tivesse adoecido, a árvore não cairia e você não precisaria mandar a foto para o seu chefe desconfiado. E o pulo do gato está exatamente nisso. A vida não é determinada no passado, a vida é determinada no agora! No instante. No presente.
A filosofia de Espinosa fala justamente sobre isso. Sobre o agora, pois para ele a vida acontece agora. Nem antes. Nem depois. Simplesmente agora. Não há liberdade para escolher. O que há é só e simplesmente a possibilidade de viver o aqui e o agora.
E se você está lendo esse texto aqui e agora é porque você foi condicionado, aqui e agora, a fazer isso.
Conhecimento é Conquista
-FS
Isto está bem proximo do efeito borboleta ou teoria do caos!