
> Todo mundo tem um vício, uma dependência. Química, física ou emocional, todo mundo é refém de algo. Eu sou de aplausos. Estar em evidência e ser admirado sempre fizeram parte do meu maior trunfo e do meu maior defeito. Hoje (2), no dia que eu completo 36 anos, eu ainda não consegui me livrar disso. Não porque eu não consiga, mas talvez porque eu não queira.
Minha mãe me conta que com pouco mais de dois anos de idade, eu já havia decorado os nomes dos políticos da época. A dona Josi adorou me exibir em uma reunião de família naquele ano de 1992 para desafiar as pessoas a me perguntarem: "Quem é o presidente dos Estados Unidos?" e eu, no mais puro suco de fofura, dizia "Buuush!". E os aplausos aumentavam quando eu falava os nomes do presidente da república, do governador de São Paulo, do prefeito da capital paulista e do prefeito de Campo Limpo.
Pode parecer exagero, mas eu tenho lapsos de pequenos flashes de memória desse dia. Eu no colo da minha mãe, vários rostos que eu não conhecia na minha frente e todos eles rindo a cada palavra que saia da minha boca. Mas eu me lembro com muita clareza de uma coisa: eu gostei da sensação!
Cresci sendo uma criança que fazia graça para arrancar algumas risadas. Independente do público (adulto ou outras crianças), eu dava um jeito de atrair todas as atenções para mim. Era um poder explêndido que foi me deixando completamente mal acostumado e carente. Para os adultos isso soava fofo e engraçado, para as outras crianças eu era só o menino exibido e mandão.
Nas brincadeiras na rua, era sempre eu quem decidia do que brincávamos e eu não sei porque cargas d'água a molecada ia na minha onda. Não vou negar que desde sempre eu tinha bons argumentos: "Vamos brincar de esconde-esconde", dizia eu cansado do meu insucesso de correr atrás dos outros no pega-pega. "Você só quer mudar de brincadeira porque você está perdendo!", diziam os outros. "Nada a ver. É que já tá anoitecendo e a gente ainda não brincou de esconde-esconde e minha mãe já já me chama para entrar. E também porque agora que tá mais escuro é o momento perfeito de brincar se escondendo", rebatia o mini sofista que só queria se safar da derrota doa brincadeira anterior. "Comigo não morreu!", eu emendava para incentivar todas as crianças a gritarem o comando deixando o último a falar com o castigo de ser o primeiro a colocar a cara no muro, contar até cem e sair a procurar pelos demais.
Em um dois de fevereiro - como hoje -, eu fui convencido a bater pique no esconde-esconde. O argumento era que, já que era meu aniversário, eu tinha que "sofrer" alguma consequência. Ou era o pique ou era tomar um cascudo de cada um deles na cabeça (tradição na minha rua para os aniversariantes). Não era tonto e fui para o muro encostar minha cabeça e contar até cem. Não deu tempo nem de chegar no 20 quando eu senti vários cascudinhos na cabeça e uma gosma descendo pelo meu rosto. Todos riam e comemoravam meu aniversário com uma clássica sequência de ovadas na cabeça.
O que era para ser só mais uma brincadeira, foi um caos. Eu, mimado como sempre fui, fiquei indignado com aquela "traição". Chorei, esperneei, quis brigar e o meu escândalo logo chegou aos ouvidos de minha mãe que, brava com minha cena desproporcional, me mandou entrar e, para tentar amenizar meu choro, deu uma pequena bronca nos meus amigos. Era dia de semana e eu comemoraria meu aniversário no final de semana seguinte com uma tradicional festa que minha mãe preparava. Eu fui praticamente obrigado a convidar os meninos que tacaram ovo em mim e, brincalhões como eram, passaram minha festinha inteira ameaçando um novo ataque de gema e clara. Eu era o centro das atenções, mas não da maneira que eu queria ser.
Na escola a centralidade das atenções continuava. Logo na pré-escola eu já fui escolhido para ser o padre da festinha junina, já que eu era o único que já sabia ler e não tinha nenhum tipo de vergonha, pelo contrário. E, no final do ano, fui escolhido para fazer o juramento da turma. Tive que dividir palco com uma amiga minha, o que eu odiei, mas era melhor dividi-lo do que não estar nele.
Foi na escola, inclusive, que eu comecei com essa coisa de "se levar a sério". Eu fui uma criança como todas as que me cercavam, ou seja, gostava de brincar, correr, pular... Mas nas escola eu me transformava num “sabichãozinho” que achava que sabia alguma coisa. Eu assistia todos os dias Mundo De Beakman só para chegar no dia seguinte na escola e falar as coisas que eu tinha decorado do programa. Ual! Meus professores me achavam um gênio, minha mãe até cogitava tentar me pular para uma série superior e eu recebia os aplausos com muito gosto. Para os meus amigos, eu só era um merdinha exibido.
O primeiro choque de realidade também aconteceu na escola. Um valentão resolveu, durante o recreio, encarar pessoas aleatórias e dizer a seguinte frase: "Vou te pegar na saída". Ele e sua gangue só queriam apavorar os meninos e rir disso na sequência. Até que ele chegou para mim e fez a "ameaça". Claro que eu fiquei morrendo de medo, mas não demonstrei. Me mantive firme e não disse uma só palavra. Assim que ele saiu de perto, comentei com os meus colegas: "Ele não é louco de me pegar. Meu pai é policial!". Pra que?! Isso chegou no ouvido dele e ele simplesmente mandou dizer que era uma brincadeira e que não ia me pegar na saída de verdade, mas que agora ele iria. Ali eu percebi que minha arrogância foi cruel comigo e fiz o que deveria ter feito: me mudei de escola.
Na escola nova, dessa vez uma particular, mais um choque. Eu não seria o mais inteligente da sala. Não enquanto aqueles meninos e meninas enfileiravam notas altíssimas em conteúdos que eu conhecia muito pouco. Não consegui chegar perto deles e recebi a pior notícia da minha vida escolar: "Felipe, sugiro que você faça aulas de reforço. Leve esse bilhete para seus pais". Eu não só era mais um. Não. Eu estava abaixo da régua da mediocridade.
Já que eu não era o mais inteligente da turma, tinha que me destacar de uma outra forma. Voltei a fazer minhas gracinhas, ganhei espaço entre a turma, conquistei a confiança dos meninos e rapidamente eu já estava no lugar que eu acreditava me pertencer. Eu liderava a sala em quase todos os âmbitos, pois eu circulava bem em todos os grupos. Todo mundo me achava legal e a admiração cresceu quando eu resolvi encontrar um palco muito maior para subir: o teatro.
No meu primeiro ano como ator estudantil, fui indicado em um festival na cidade como Melhor Ator Coadjuvante. Eu só tinha quatro ou cinco falas, mas foi o suficiente para chamar a atenção dos jurados. No ano seguinte, já fazia parte da cia de teatro da cidade e atuava na Campanha do Agasalho, no qual levamos mais de 15 mil pessoas para o Cine Teatro Ayrton Senna em um mês de apresentações diárias, às vezes quatro por dia. Todas as escolas levaram seus alunos ao teatro para assistir a peça da campanha. Fui ovacionado quando chegou o dia do meu colégio, afinal, eu estava o representando. Era um orgulho para eles.
Eu não sosseguei até conseguir meu prêmio de melhor ator daquele festival. E eu o consegui graças ao meu talento? Sim. Mas acrescente aí uma boa dose de petulância. No Ensino Médio eu teria que voltar para a escola pública, a mesma que fugi. Mas a situação era outra. O valentão nem estudava mais lá, pra início de conversa e eu já era grandinho o bastante para tentar me defender caso eu precisasse. Porém a arrogância tinha aumentado.
Indicado duas vezes no FETEST (Festival de Teatro Estudantil), eu queria ganhar o prêmio. Quando eu voltei para a Escola Estadual Victor Geraldo Simonsen, o grupo de teatro de lá veio me procurar. Eles me queriam na peça deles. Mas, por fazer parte do grupo de teatro da cidade, o mesmo que organizava o festival, eu não poderia concorrer a nada. Para eu concorrer, eu precisaria abrir mão da minha titularidade no Cine Teatro. No primeiro ano, eu participei do grupo deles e até atuei no papel principal da peça que eles montaram, O Auto da Barca do Inferno. Especialmente naquele ano, o FETEST não teria premiações. Iria ser um "festival amistoso", por isso participei, mas seria minha despedida do festival.
No ano seguinte a competição por prêmios voltaria e minha obsessão pelo prêmio de melhor ator também. Saí do grupo da cidade, voltei para o grupo da escola e impus uma condição. "Eu só atuo com vocês se eu ficar com o papel principal". Eu tinha moral com o grupo e era o único ator da escola que atuava pela cidade, não disseram "não" pra mim. Atuei e venci o troféu de melhor ator de 2005, mas meu antigo grupo não ia deixar barato a minha saída. Além de avacalhar com a minha atuação na "Sessão Maldita" (uma espécie de sátira de todas as peças do festival no dia da apresentação), convenceram os jurados a dividirem o prêmio de "Melhor Ator" entre eu e outro menino. Como no juramento da pré-escola: melhor dividir o prêmio do que não ter nenhum.
Eu precisava de um novo palco. Com o objetivo máximo alcançado pelo ator estudantil aqui, eu já não tinha mais motivações para continuar atuando. Queria outro lugar para continuar sendo aplaudido e procurei o meu primo para resolver esse problema: "Álvaro, vamos montar uma banda?".
Álvaro na guitarra, Gilson no Baixo, Cidão na Bateria e eu nos vocais. A banda Órion nasceu para tocar músicas autorais, mas eu queria mesmo era imitar o Bono, do U2. Consegui convencer os três a tocarmos muitas músicas do U2 e a nos escrevermos em um concurso de bandas, o Avalon Rock Fest, em 2007. Eram dois dias de festival com dezenas de bandas que tinham 15 minutos de palco. Tocamos três, duas do U2 - óbvio - e uma autoral que se chamava "Cante o Amor".
Antes de nós, tocou uma banda de Death Metal, no qual o vocalista se debatia no chão enquanto gritava sua música. A galera pirou. Na sequência, eu estava fazendo um coração com as mãos - igual ao Bono - e entoando o refrão "Cante o amor por onde você foooor". O público aplaudiu por protocolo, mas minha primeira experiência como vocalista reservava uma surpresa. O público pode não ter gostado tanto, mas os jurados acharam que eu merecia ganhar o prêmio de Melhor Vocalista. Depois da euforia de ter pego o troféu e os R$200,00 em dinheiro, eu fui cumprimentar um dos jurados e aproveitei para perguntar o porquê eu. "Você canta como se estivesse em um Morumbi lotado". Quem dera.
Fui expulso da Órion por querer imitar o Bono demais. Montei a Genomma para continuar imitando o Bono em paz. Faço isso até hoje, mas com mais moderação. Porém, o palco da música é muito cruel, pois ele não aceita qualquer um. São 15 anos de Genomma e foram raras as vezes que conseguimos subir em palcos minimamente importantes para sermos aplaudidos por gente o bastante.
Essa frustração talvez tenha sido motivo para eu, inconscientemente, buscar outro lugar para ser aplaudido. Foi numa aula de História da Arte no curso de Jornalismo que eu descobri qual seria. Paulo Genestreti estava em cima da mesa, alucinado com a aula e fazendo a sala flutuar com suas explicações. "GÓTICO! GÓTICO!", repetia ele em frenesi para nos falar sobre a arte das catedrais. Eu, hipnotizado, ganhava uma certeza no meu coração: era naquele palco, o da sala de aula, que eu queria estar.
Já estou nos palcos da sala de aula há 13 anos e acho que esse é o meu lugar no mundo. Não que eu receba aplausos a cada aula, longe disso. Mas é na sala, como professor, que eu estou a cada dia aprendendo mais sobre essa minha necessidade por validação alheia. Hoje, minha situação é muito melhor do que já foi um dia. Ainda sou apegado à admiração, mas consigo perceber aos poucos que a escola não é sobre o professor, é sobre o aluno.
Você precisa ser muito humilde para ser um professor. Quero dizer, se você realmente quiser ser um bom professor. Para aquele arrogante - como eu fui muito e tento não ser mais -, a estrela da aula sempre tem que ser ele. O sabe tudo, o iluminado o conhecedor. Balela. Se você quer ser um bom professor, você precisa entender que tudo o que você faz em uma aula é para o seu aluno brilhar. Como professor universitário eu demorei para perceber isso. Agora, como também professor do ensino fundamental e médio, isso fica mais latente. Eu devo aplaudir e não ser aplaudido.
Mas cá estou eu, no dia do meu aniversário de 36 anos refletindo tudo isso e dividindo isso com você. Gosto de escrever sobre mim e minha história pois isso, de certa maneira, me obriga a olhar para mim mesmo e pensar. Sem contar que ao escrever eu organizo meus devaneios. Como diz o outro lá: "não é terapia, mas é terapêutico".
Mas aí eu fiz todo um movimento melodramático nas minhas redes sociais. Mudei minhas fotos de perfil, fiz enigmas nas minhas postagens e criei uma nova identidade para a versão 3.6 do Felipe aqui. Fazer o quê? Como já dizia Cazuza, "Faz parte do meu show, meu amor".
No fim, esse texto talvez seja apenas mais uma busca desenfreada por aplausos.
Feliz aniversário pra mim!
Conhecimento é conquista.
-FS
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