Diário de Bordo #24 - Como uma cidade sobrevive aos trapaceiros
- Felipe Schadt

- 19 de jul.
- 8 min de leitura

Três baixinhos entraram em um bar em Nuremberg, no norte da Baviera, na Alemanha. Os três pareciam bem satisfeitos antes mesmo da cerveja vermelha chegar à mesa. Eles estavam com cara de quem havia aprontado alguma coisa.
O primeiro, todo de vermelho, se gabava com os bolsos cheios de moedas de ouro. Disse que a rodada seria por conta dele, mas que não podia se demorar muito, pois precisava dar o pé da cidade o quanto antes.
O segundo, com um chapéu e um livro de orações na mão, agradecia pela rodada de cerveja. Diferente do primeiro, não tinha pressa, pois ainda tinha muito o que fazer na casa que acabara de conseguir para morar. Já era a segunda ou terceira moradia de favor.
O terceiro era o que menos sorria. Bravo e com um bigode engraçado, o baixinho oriundo da Áustria não ia beber. Ao invés disso, balbuciava um discurso que gostaria de fazer ali naquela cervejaria. Ele tinha acabado de chegar e tinha muitos planos para a cidade.
Eram todos trapaceiros e Nuremberg sobreviveu aos três.
Câmbio!
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Nuremberg fica a 169 km de Munique e ir até lá se mostrou um desafio interessante. Se você quiser economizar tempo - uma hora de trem -, vai ter que pagar caro, quase uns 60 euros ida e volta. Agora se você quer economizar dinheiro, vai ter que ter tempo de sobra, cerca de três horas para fazer o mesmo trajeto. Isso acontece por causa da qualidade dos trens e do número de paradas que ele faz.
Decidimos pelo óbvio: o mais barato. Mas tivemos sorte. Se você entrar na internet e tentar comprar seus tickets, vai pagar os benditos 60 euros. Se você for em uma das máquinas dentro da Haupfbanhhof (Estação Principal), você vai pagar uns 48 euros na mesma passagem. Agora se você for ao balcão de atendimento na mesma estação, vai pagar 22 euros. Nossa sorte foi não confiar no meu alemão, ir direto ao balcão e comprar lá (em inglês). Economia!
Isso acontece porque, sabe se lá o motivo, não aparece na internet ou na máquina de tickets a opção de trens Regionais. Ao invés disso só aparece a opção dos ICE (Inter City Express), os famosos “trens bala”. É só no balcão de atendimento que você recebe a opção dos trens que param em várias cidades antes do seu destino final.
Três longas horas depois, estávamos em Nuremberg. E logo na saída da estação, nos deparamos com a Altstaat (cidade velha). Eu falei comigo mesmo: “É essa torre aí é um muro de pedras rosas? É isso!?”, a vista limitada da cidade me trapaceou. A cidade dentro daqueles muros é gigantesca, linda e cheia de histórias.

Minha primeira providência foi tomar um sorvete. Gastei todo meu alemão para pedir um: “Ich gerne zwei kugeln in die Waffel…” (algo como “eu quero duas bolas na casquinha…”) até que o atendente respondeu em português. Eu descobriria mais tarde, depois da terceira sorveteria, que a maioria delas está recheada de brasileiros trabalhando como atendentes. Em todas as três fui atendido por um conterrâneo.
Detalhe importante para um dos sabores que um dos sorveteiros (sim, o cara que faz o sorvete) me indicou. “Lavanda!?”, indaguei curioso. “Ele não parece bom, mas é”, rebateu. Eu experimentei e ele tinha mais do que razão. Fiquei apaixonado por aquele sabor.

Abastecidos pelo sorvete, eu e Carol resolvemos explorar a cidade. Tínhamos reservado um tour que só começaria em 90 minutos. Tínhamos tempo para vasculhar por conta própria uma das cidades mais controversas da Alemanha.
Morro a cima, havia um castelo. Construído no século XI, a fortificação servia para abrigar os príncipes votantes do Império Romano-Germânico. Por isso precisava ser bem protegido e, na época, isso significava estar no lugar mais alto da cidade. A subida até lá foi um tanto quanto sofrida, sobretudo pelo calor de quase 30° que fazia no norte da Baviera. O prêmio pela “escalada”: uma vista maravilhosa de toda cidade.

Na hora do tuor, de volta a parte baixa, nos encontramos com a nossa guia, a mexicana Valentina. E então descobrimos muitas histórias sobre Nuremberg, sobretudo que é uma cidade que precisou se reerguer estrutural e moralmente ao longo da sua história.
De frente para a vista mais icônica de Nuremberg, o antigo Hospital do Espírito Santo, que é cortado pelo Rio Pegnitz, ouvimos a história de Till Eulenspiegel.
Diz a lenda que Till Eulenspiegel, o maior malandro da Alemanha medieval (uma espécie de Pedro Malasartes do Velho Mundo), apareceu em Nuremberg dizendo que era médico. Sua intenção era enganar os doentes e arrancar dinheiro deles prometendo curas milagrosas. Acontece que ele não sabia, mas o Hospital do Espírito Santo estava superlotado e o diretor do hospital, ao descobrir que um novo médico havia chegado na cidade, foi logo o recrutando o farsante.

Sem saber como curar doentes, Eulenspiegel estava com medo de ele próprio contrair alguma doença e decidiu que precisava sair logo dali. Mas não faria isso de bolsos vazios. Então teve um plano: “eu tenho a cura para todos vocês”, disse ele empolgando os moribundos. “Mas precisarei das cinzas de um de vocês para criar o antídoto”, a animação desapareceu. “Vou escolher o mais doente de vocês para executar e cremar. Farei minha escolha amanhã pela manhã do paciente mais doente”.
No dia seguinte, todos os doentes, não querendo virar cinzas, se levantaram do seus leitos e foram embora do Hospital dizendo estarem curados. Ao ver o centro médico vazio, o diretor pensou ser um milagre e em agradecimento a Eulenspiegel, pediu a cidade dar a ele 200 moedas de ouro e o baixinho canastrão fugiu de Nuremberg antes dos doentes voltarem para o hospital.

Eu ri dessa história e fiquei ainda mais impressionado com a imagem que a guia nos mostrou. Era uma ilustração de Till Eulenspiegel: baixinho, com uma roupa de bobo da corte toda vermelha e, na cabeça, duas “antenas” com guizos dourados em suas pontas. É ou não é muito parecido com o Chapolin Colorado?
Seguimos caminhando e eu procurando por toda parte uma estátua que há muito tempo eu queria ver. Mas ela não estava em nenhum canto da cidade e eu estava vivendo em um enigma.
Kaspar Hauser protagonizou uma das histórias mais fantásticas e misteriosas da Europa. Tudo isso porque ele era ninguém que ficou famoso por justamente não saber quem era. E o fim da história é que ele é assassinato e ninguém sabe o porquê e por quem.
Assim que chegou na Neutorstrasse (Rua do Novo Portão), na estrada leste da cidade, ele carregava em sua mão um livro de orações e um chapéu, na outra duas cartas endereçadas ao comandante da polícia de Nuremberg. Ele não falava, mal conseguia ficar de pé e intrigou toda a cidade.

Muitos o adoraram e deram moradia para Kaspar, que aos poucos ia aprendendo a falar e a se lembrar de sua história. Ele relatava que viveu toda sua vida dentro de um porão sem contato com nenhum humano. Toda vez que acordava, havia água e pão e nada mais.
Isso gerou inúmeras teorias da conspiração a respeito da origem do rapaz. A mais famosa dizia que ele era descendente direto da família real de Baden e que teria sido escondido por disputas políticas. As conspirações o tornaram famoso, sua fama rodou o continente e ficou conhecido como “Filho da Europa”.
Mas sua mitomania foi logo descoberta por seus anfitriões graças às histórias que ele contava cada vez mais sem sentido e contraditórias. Para não perder sua fama, forjou três tentativas de assassinato. Na terceira não se curou do ferimento causado por ele mesmo e morreu jurando que foi um homem desconhecido quem o matou. No local do suposto atentado, em Ansbach, há um monumento que diz “Aqui um desconhecido foi morto por um desconhecido”.
São mais de 400 trabalhos acadêmicos que se dedicam a desvendar o caso. Eu o conheci em um filme que assisti na faculdade “O enigma de Kaspar Hauser” (Jeder für sich und Gott gegen alle - título original, que traduzido fica: Cada um por si Deus contra todos).

Fiquei tão obcecado pela história que quis muito conhecer a estátua em sua memória. Mas Kaspar Hauser continua enganando aqueles que se interessam por ele. Eu jurava que a estátua ficava em Nuremberg, mas quando não a encontrei na cidade e ela não foi mencionada no tour, dou uma pesquisada no Google e lá está: a estátua está em Ansbach, cidade que passou seus últimos dias, pois foi sem ninguém que lhe desse abrigo em Nuremberg, recebeu tutela de um inglês rico que morava na cidade vizinha.
O tour pela cidade continuou e nós voltamos a subir o morro para ver o castelo (outra vez). Mas estava tão legal e instrutivo que não nos importamos. E é então que Valentina, nossa guia, nos conta o óbvio: Nuremberg foi basicamente toda reconstruída após a Segunda Guerra Mundial.
A cidade tem a maldita alcunha de “cidade nazista”. Isso porque Hitler via na cidade o cenário perfeito para sua propaganda nazi. Como Nuremberg foi, no Império Romano-Germânico (o primeiro Reich/Reino alemão), o baixinho austríaco viu a oportunidade de retomar a tradição dos encontros dos príncipes da Europa e fazer da cidade o local das reuniões do partido nazista.

Se você pesquisar “O Triunfo da Vontade” (Triumph des Willens) na Internet, vai se deparar com uma mega produção cinematográfica (para a época) sobre esses comícios. O filme propaganda de Leni Riefenstahl foi meu objeto de estudo na faculdade de história e eu sabia bem da grandeza desses comícios megalomaníacos do Füher.
Por conta disso a destruição da cidade era primordial e simbólica. Os americanos deram cabo disso e em uma das batalhas mais cruéis de toda guerra. Sem soldados (pois na altura da guerra a maioria já estava morta), Hitler colocou os jovens da Juventude Hitlerista para morrer no front.

Mais de 90% da cidade foi destruída por causa da maior trapaça que um país já foi vítima. Hitler transformou aquele local no símbolo nazista na Alemanha, mas Nuremberg se redimiria. Se reconstruiu, tijolo por tijolo e, em alguns anos, já não deixava à vista cicatrizes da guerra. Porém era necessário também a reconstrução moral.
Essa veio mais de pressa. Semanas após o fim da guerra, um julgamento foi criado para julgar os nazistas pelos crimes contra a humanidade. O Tribunal de Nuremberg mostrou para o mundo que os horrores do nazismo não ficariam em pune. O alto comando nazista foi condenado a execução. Era o fim do inferno (que recomeçaria com a guerra fria, mas conto isso quando chegar em Berlim).
Sem tempo para visitar a sala 600, local exato do julgamento, eu e Carol resolvemos esticar nossa passagem por Nuremberg e ficar um dia a mais para fazer essa visita quase obrigatória para quem estudou (como eu) a história do nazismo.

E com um dia a mais, ainda visitamos uma cervejaria subterrânea que funcionou como bunker para proteger os civis dos ataques aéreos. Foi claustrofóbico, mas interessante. E também passamos no local onde os comícios aconteciam, mas que hoje é um gigantesco estacionamento do parque que fica ao lado.
Três trapaceiros que não resistiram a força de uma cidade milenar que, tenho a impressão, se reconstruiria quantas vezes fossem necessárias.
Hora de voltar para Munique. Para nossa sorte, o trem rápido estava pelo preço do trem lento. E conseguimos isso sem nenhuma trapaça.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é conquista!
-FS





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