Diário de Bordo #23 - Os loucos e seus castelos
- Felipe Schadt
- 16 de jul.
- 6 min de leitura

Era um lago lindo e cheio de cisnes. O verão alemão é gentil com aqueles que habitam a Baviera: nem muito quente ao ponto de te sufocar, nem frio ao ponto de querer se agasalhar. Um clima perfeito.
Sem contar na paisagem. Estar na beira de um dos lagos bávaros é como viver dentro de um quadro do romantismo: cores, brumas e cenários deslumbrantes. Era exatamente assim que aquele lago naquele período do ano faria alguém se sentir, em um conto de fadas.
Mas além dos cisnes, algo estava flutuando nas cristalinas águas do Starnberger See. Algo que profanava a paz daquela pintura da natureza. Chegando mais perto, o algo se transformou em dois e o horror foi duas vezes maior.
Dois corpos flutuavam entre os cisnes que davam espaço para o funesto presente da morte.
Câmbio.
.
Não posso garantir isso, mas tenho quase certeza que a primeira vez que vi aquele castelo foi numa apostila escolar lá pela sexta ou sétima série. Mas lembro que achei bonito e muito parecido com o castelo símbolo da Disney.
O Neushwanstein (nói-Shivam-staim, caso você queria pronunciar o nome em alemão) é, sem dúvidas, o castelo mais reconhecível do mundo. De arquitetura que mistura elementos do gótico ao bizantino, essa joia inspirou Walt Disney na hora da confecção dos desenhos para o castelo da Cinderela.

Das páginas dos livros e dos desenhos animados para a materialidade. Eu estava prestes a conhecê-lo ao vivo e a cores e minha animação só não era maior do que a de Ludwig II da Baviera, rei responsável pela construção do castelo mais famoso do mundo.
Enquanto eu e Carol encarávamos duas horas de trem até a cidadezinha de Füssel, eu aproveitei para aprender mais sobre o Neuschwanstein. Embora seja um castelo - e sempre fazemos referência a algo muito velho, medieval -, ele foi construído no século XIX e o seu rei jamais viu a obra concluída.
Minha leitura foi interrompida por uma das paradas do trem. Pela janela eu vi algumas crianças acenando para os viajantes dentro dos vagões. A Carol deu um “tchauzinho” para um deles que, montando em um triciclo, tentou, como um louco, seguir o trem de forma paralela. Ele sabia que jamais nos acompanharia por muito tempo e mesmo assim o fez. E eu só entenderia no final do dia.

Ludwig II ainda era um menino quando teve que assumir o trono da Baviera. No auge dos seus 18 anos, ele só se interessava por arte e extravagâncias culturais. Onírico como poucos, resolveu usar todo seu poder para construir três castelos, mas deixaria para um deles toda sua especial atenção.
Chegamos em Füssel e nos deparamos com mais um dia de chuva. Ainda faltavam duas horas para o horário do nosso tour pelo castelo e resolvemos esperar em um Biergarten (cervejaria) a beira de um lindo lago entre as montanhas. Cena de quadro.
Para nossa sorte, no exato momento que precisávamos pegar o ônibus morro a cima, a chuva deu uma trégua (as nuvens não). Revolvi ir ao pé do lago para ver melhor e respirar o ar puro das montanhas. Não deu para aproveitar muito, pois nosso horário de subir se aproximava.

Pelas imagens do livro da escola ou do desenho infantil, você consegue ter uma ideia do que é o Neuschwanstein, mas você só entende quando o vê de perto. Foi esse sentimento que eu tive quando estava aos seus pés e olhando para cima, para direção que uma das suas torres apontava. Mas devo confessar que nas imagens ele parecia maior, mas continua sendo monumental.
Ele é um castelo de contos de fadas exatamente porque Ludwig II o queria assim. E eu adoraria te mostrar que por dentro ele é ainda mais lindo do que por fora, mas não é permitido fotografar nas dependências do castelo. Vou tentar narrar, com toda capacidade descritiva que tenho, para você ter uma noção.

Na entrada do castelo, recebemos um aparelhinho sonoro para colocar no ouvido e ouvir as instruções da guia. Infelizmente ela não foi uma boa guia, falava baixo e de maneira mecânica poucas informações sobre tudo que estávamos vendo. Para minha sorte, eu tinha estudado o castelo antes de chegar nele. Mania de historiador.
Sua área interna é muito colorida com afrescos para todos os lados. Essas pinturas que dividem espaço com as infinitas janelas, contam histórias que Ludwig II amava. Uma dessas histórias é de Lohengrin.
Filho de Persival, o rei do Santo Graal, Lohengrin é um cavaleiro fantástico que ajudou Elza e seu irmão Gottfried a se livrarem dos que tentavam usurpar o trono destinado aos irmãos. Lohengrin tinha como símbolo o cisne e foi em cisne que Gottfried foi transformado pelos seus inimigos para abrir caminho para os usurpadores.
Dentro do castelo há cisnes em todos os lugares e de todas as formas: de ouro, pedras preciosas, madeira, pedra, na parede, em quadros… o cisne é o grande símbolo do castelo. E é aí que vem o nome. Neuschwanstein significa “Novo Cisne de Pedra”.
Seu castelo não é uma loucura, seu castelo é a realização de seus sonhos.
Além dos cisnes, o luxo está em cada detalhe da mobília que ainda está em perfeita conservação (lembre-se que é um castelo relativamente novo). Pedras preciosas ornam os inúmeros lustres de ouro e seda e camurça forram os móveis do castelo.
Ludwig II, católico até a medula, mandou construir uma pequena igreja ao lado de sua suíte. Essa, inclusive, tinha inúmeros cômodos para acomodar todas as extravagâncias do rei, como trono para leitura, capela (além da pequena igreja), salão de reunião com telefone (o século XIX já usufruía dessa tecnologia) e muito mais. E cada um desses cômodos possuía afrescos que, ora eram de referências católicas, ora eram de referências de lendas germânicas.
O rei ainda usava boa parte do seu dinheiro para bancar seu artista favorito, o compositor de óperas Richard Wagner que, com o patrocínio de Ludwig II, montou o espetáculo Lohengrin, o último de sua carreira. Mas a paixão pela arte custou caro para o jovem rei da Baviera.

Sem interesse pela política, deixou a elite bávara em estado de nervos com o avanço da Prússia como o maior reino alemão e a estagnação da Baviera que, naquela altura do campeonato, já havia sido absorvida pelo império alemão liderado pelos prussianos. Sem tino para governar, afundado em dívidas, com muita inimizade na corte e descrédito entre os membros do seu gabinete, Ludwig II foi deposto.
O seu tio, Luitpold, foi convencido pelos ministros do rei a taxá-lo como louco e um relatório médico foi preparado afirmando que Ludwig II não tinha condições mentais de seguir seu reinado. Afastado, ele foi conduzido até o castelo de Berg, aos pés do lago Starnberg.
Dois dias depois de ser deposto, e já confinado, convenceu seu médico, o dr. Grudden, a acompanhá-lo em um passeio pelos arredores do lago. No dia seguinte, oficiais do castelo encontraram os corpos de Ludwig II e de seu médico boiando no Starnberg See.
A versão oficial da morte é que Ludwig II tentou se matar no lago, mas foi impedido pelo seu médico. Após uma luta corpo a corpo, o rei deposto matou o doutor e se afogou na sequência.
A teoria paralela diz que Ludwig e seu médico foram mortos a tiros, pois há relatos de camponeses que ouviram disparos na mesma noite que ambos desapareceram. Sem contar que existe um relato de dentro da família do rei que fala de dois furos de bala em suas roupas confiscadas após sua morte. O que ficou foi o segundo maior mistério da Baviera (o primeiro eu contarei em breve) e um castelo que se tornou símbolo de um país.
No fim do tour, eu fui para a varanda dos fundos do castelo para absorver tudo o que tinha visto e me afogar naquela paisagem de tirar o fôlego. No alto das montanhas, pude ver como o mundo é grande e pequeno ao mesmo tempo, mas há outra coisa que pensei.

Lembrei de Nietzsche e de tudo o que ele já disse sobre ser fiel às suas inclinações, aos seus sentimentos. Ludwig II não foi um louco, foi só alguém que respeitou o que sentia e materializou suas paixões. Seu castelo não é uma loucura, seu castelo é a realização de seus sonhos. E ele entrou para a história e até hoje é conhecido e reconhecido por isso, por viver seu sonho. Não atoa é chamado por aqui de Der Märchenkönig (o Rei Conto de Fadas).
Então eu pensei em todas as vezes que fui fiel às minhas inclinações. Todas as coisas que fiz motivado pelas paixões e guiado pelos meus impulsos mais verdadeiros. Também pensei: “qual castelo vou construir agora? Qual castelo será o motivo de me chamarem de louco?”

O passeio havia acabado. E eu notei que as nuvens deram uma trégua. Pude ver, pela primeira vez nessa viagem, o céu azul alemão e mais pensamentos vieram à tona.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é conquista!
-FS
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