Diário de Bordo #25 - O dia que eu visitei Auschwitz
- Felipe Schadt

- 21 de jul.
- 7 min de leitura
Atualizado: 22 de jul.

Eu estava com medo. Tudo o que eu já tinha lido, visto e ouvido sobre o nazismo iria se materializar em forma de memória viva e eu não tinha certeza se eu queria presenciar isso.
Eu estava com medo. E se eu chorasse no meio do caminho? Bom, eu tenho certeza de que eu não seria o único, o primeiro e nem o último. Sentir toda a energia daquele lugar estava me tirando o sono. Até crise de ansiedade uns dias antes eu tive.
Eu também estava com medo de, no fim das contas, não me sensibilizar o bastante. E se passasse pela minha cabeça, por um segundo se quer, em relativizar de qualquer forma que fosse, a dor das milhões de pessoas que foram exterminadas ali?
Eu estava com medo… Mas nenhum, e nem todos eles juntos, pode ser comparado com o medo de quem entrou em Auschwitz sem qualquer perspectiva de sair de lá vivo.
Câmbio!
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Era muita gente na fila. Chuto umas 300, por baixo. E não eram nem 7h30 da manhã. O céu estava azul e o sol do verão do leste europeu castigava sobretudo a mim que decidiu ir de calça jeans e de camiseta preta. “Oras, deve haver um dress code para visitar esse lugar”, pensei antes de sair do hotel.
Visitar Auschwitz sempre esteve nos meus planos, mas nunca movi uma palha para que isso fosse possível. Foi a Carol que fez muita questão de incluirmos na nossa viagem para Alemanha uma passada rápida na Polônia. “Não vou de bermuda… meio falta de respeito”, também pensei enquanto colocava a calça jeans.
O fato é que o calor não iria poupar ninguém aquele dia o que pra mim soou minimamente poético, já que estávamos prestes a entrar no inferno de todo judeu na década de 1940. Mas no inferno, o calor não é o pior dos problemas.
A primeira passagem do tour guiado foi um corredor gigantesco que dá acesso até a entrada principal do campo de concentração. Caminhamos por uns três minutos e, em silêncio absoluto, as pessoas eram capazes de ouvir duas coisas: seus próprios passos fazendo eco no concreto e uma gravação que ficava o dia inteiro falando os nomes das vítimas do extermínio nazista. Eu já precisei engolir o choro ali mesmo.
Foi então que eu vi o famoso arco do portão principal com os dizeres “Arbeit Macht Frei”. Essa frase significa “O trabalho liberta”, uma falsa promessa para quem entrasse ali, uma crueldade que enchia de esperança milhões de prisioneiros que era possível sair com vida. O que seria de uma prisão se seus prisioneiros não pudessem sonhar com a liberdade?
Assim que passei pelo portão entendi que estava nas dependências de um dos lugares mais horrorosos da história da humanidade. O dia estava lindo e o verde do gramado é das árvores davam um ar de beleza, mas como a frase da entrada, era só para criar uma falsa esperança de que ficaria tudo bem.

As primeiras galerias que visitamos eram dedicadas ao recebimento dos condenados. Perdiam suas roupas e pertences, raspavam os cabelos e vestiam um pijama listrado com um número de registro. Esse número era tatuado na pele, exatamente como é feito com gado. A partir daquele momento, aquele ser humano deixava de ser considerado uma pessoa.
A desumanização ganhava mais um traço de crueldade. Todos eram fotografados individualmente pelos nazistas. Há uma galeria destinada aos dormitórios que tem em seu corredor as duas paredes lotadas com essas fotografias. Exaustos, os rostos eram o retrato do medo. O mais triste é que algumas fotos mostram pessoas que tentavam esboçar um sorriso. Talvez elas ainda não tinham entendido o que estava acontecendo.
Nessa mesma galeria, onde ficavam os dormitórios, os quartos eram forrados com feno, mas que foram gradativamente trocados por colchões. A crueldade é que o tecido desses colchões eram feitos com os cabelos dos próprios judeus. Os nazistas cortavam seus cabelos e usavam como matéria prima para colchões e tapetes.
Foi possível ver uma pilha com centenas de quilos de cabelo humano devidamente expostos. Perto deles haviam outros pertences: óculos, malas com nomes e endereços, utensílios de cozinha e sapatos.
Nem todos os prisioneiros aceitavam aquilo passivamente. Para os resistentes, dois caminhos rápidos: a prisão (dentro da prisão) ou a morte por fuzilamento. Alguns dos judeus que lá estavam tinham certo valor para o trabalho e, quanto mais vivessem, mais produziriam para o Reich. Esses eram presos e torturados e, se mesmo assim não fossem controlados, iam para a parede de fuzilamento. Eu vi essa parede e imaginei quantas súplicas foram feitas ali antes do tiro fatal.
Outros judeus tinham outro tipo de valor: experimental. Muitos prisioneiros e prisioneiras eram usados como cobaias humanas para nazistas como Joseph Mengele. O médico, conhecido como o “Anjo da Morte”, realizava experiências com os condenados em Auschwitz sem nenhum tipo de receio ou constrangimento. Para o cientista nazista, eram como ratos de laboratório. O curioso disso tudo é que Mengele fugiu no fim da guerra e morreu de velhice no Brasil.
Mas nada é mais assustador naquele inferno do que as câmaras de gás.
No começo da perseguição dos nazistas aos judeus, os oficiais de Hitler matavam as pessoas na rua normalmente com um tiro. Isso estava pegando mal com a opinião pública e a morte de judeus precisaria ser feita de outra maneira.
Havia o plano eugenista de criar aras humanos, jogar os judeus lá e impedirem que eles tivessem filhos. Separar os homens das mulheres e a esterilização eram as saídas encontradas pelos nazistas para acabar com a raça judia na Alemanha. Mas Heinrich Himmler, comandante da SS, teve um plano que mudaria os rumos da história.
“A solução final”, como ficou conhecida, tratava de transformar os campos de concentração em campos de extermínio. Câmaras de gás foram construídas e anexadas a crematórios. Um composto químico chamado Zyklon B, marca registrada de um pesticida a base de ácido cianídrico e nitrogênio e que causava sufocamento e uma morte altamente dolorosa, mas rápida, foi utilizado nessas câmaras.

Primeiro uma ante-sala na qual os judeus deveriam ficar nus. Depois, espremidos em uma câmara, ficavam no escuro absoluto quando as portas eram fechadas. A única luz que entrava no recinto vinha quando a chaminé era aberta e um soldado nazista com máscara de gás, jogava o composto químico para dentro. Depois disso era sofrimento e morte.
Auschwitz teve uma câmara de gás que serviu como experimento. Eu entrei nessa câmara e posso afirmar com muita segurança que o ar fede à medo. Nas paredes, é possível ver marcas de arranhões das pessoas desesperadas para fugir. O clima é pesado e carregado demais para você ficar ali mais do que um minuto. E quando você pensa que terá alívio, vem o crematório anexado onde os corpos eram incinerados.
Mas Auschwitz era “pequena” demais para o apetite macabro dos nazistas. Construíram ali perto um segundo campo de extermínio, Birkenau.

O trem chegava com dezenas de judeus em cada vagão, viajando dias de pé, sem ter o que comer ou beber. Muitos morriam no trajeto e os que sobreviviam, eram colocados em uma fila para serem avaliados. Um médico nazista fazia uma análise extremamente superficial e decidia ali mesmo, na fila formada para a plataforma, quem iria para a fila da direita e quem iria para a da esquerda.
Na fila da direita, iam os minimamente saudáveis que aguentariam alguns meses de trabalho forçado antes de morrerem por exaustão. Na fila da esquerda, iam os que não tinham utilidade para o Reich e eram levados direto para as câmaras de gás. Nesta segunda fila, a grande maioria eram mulheres, crianças e idosos. O caminho da plataforma do trem até as câmaras de gás foi chamado de estrada da morte.
Assim que eram mortos nas câmaras, os corpos precisavam ser levados para os crematórios. Quem você acha que fazia esse trabalho? Era muito comum um judeu carregar os corpos de familiares e amigos para os fornos. As cinzas eram espalhadas pelos prisioneiros nas áreas cultivadas do campo de extermínio como fertilizantes, o que torna Birkenau o maior cemitério do mundo.
O tour terminou nos alojamentos. Verdadeiras gavetas onde três ou quatro judeus dividiam a mesma “cama” após um dia de trabalho exaustivo. Se não fosse o cansaço, morriam de doenças infecciosas como o tifo. Se ainda sim sobrevivessem a isso, tinha o frio que castigava no inverno polonês. Mas o fim da linha uma hora ou outra chegaria com as câmaras de gás.

Os nazistas tentaram destruir as infinitas provas que produziram contra eles mesmos ao final da guerra. Há muitos escombros em Auschwitz-Birkenau, mas que estão devidamente protegidos e preservados.
Eu saí transformado dessa visita. E olha que eu já sabia de muita coisa que acontecia ali e me preparei psicologicamente por dias. Mas não tem como sair de lá a mesma pessoa que entrou. O horror fica estampado na sua alma e você entende, mesmo que pouco, até onde a maldade humana pode chegar.
Milhões de pessoas visitam Auschwitz todos os anos e é uma pena não ser um privilégio para todos. Por isso é muito importante visitar museus e exposições sobre o holocausto onde quer que seja, para já se ter uma noção do que de fato houve.
Lembro de uma vez que levei meus alunos do ensino médio em uma escola que trabalhei para uma exposição que rolou no Museu Solar do Barão, em Jundiaí, no qual falava-se sobre o holocausto. Na ante-sala do museu, esperando o guia chegar, a diretora desse colégio olhou para trás (para os alunos) e fez o seguinte comentário: “eles não vão jogar gás aqui na gente não, né!?”. O deboche dela (ela estava rindo da “piada” que fez) me deixou muito constrangido naquele dia. Hoje eu lembrei disso e fiquei com raiva.
Mas a ignorância dessa mulher que trabalha como educadora é só o reflexo da nossa pouca cultura museológica. Os museus e memoriais servem para, de uma maneira muito didática, aprendermos algo. No caso de Auschwitz, lembrar para nunca mais repetir. Fico pensando o quão necessário é ter museus espalhados pelo Brasil sobre a escravidão.
O dia continuava lindo, mas ali, no inferno, a única beleza é deixá-lo para trás.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é conquista!
-FS





Depois que visitei Auschwitz-Birkenau nunca mais consegui assistir filme sobre a 2a guerra.
Realmente impossível sair de lá o mesmo.