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Diário de Bordo #22 - A pegada do Diabo na capital da Baviera

  • Foto do escritor: Felipe Schadt
    Felipe Schadt
  • 14 de jul.
  • 6 min de leitura


Nova Prefeitura, na Marienplatz, Munique
Nova Prefeitura, na Marienplatz, Munique

No meio do tour por Munique, paramos na frente de uma igreja, a Catedral de Nossa Senhora - Frauenkirche para os alemães -, e sentimos um vento gelado para o verão europeu.


“Estão sentindo esse vento?”, perguntou Luís, nosso guia teuto-mexicano. “Esse vento é, segundo a lenda, o próprio Diabo”, enfatizou com certo suspense.


A história diz que os bispos responsáveis pela construção da igreja não tinham mais recursos para terminar a obra. Ao perceber o desespero dos religiosos, o Diabo em pessoa ofereceu um acordo, prometendo a eles o dinheiro necessário para a construção da igreja com uma única condição: ela não deveria ter janelas. O Caramunhão queria o templo completamente escuro.


Os bispos aceitaram a proposta mas não cumpriram sua parte no acordo. Fizeram janelas enormes cheias de vitrais coloridos que fazem o Sol inundar a igreja com luzes vibrantes. Quando o Sete Peles voltou para supervisionar a obra, viu que seu pedido não tinha sido obedecido e ali, no nártex da igreja, tomado pelo ódio, bateu o pé com tanta força que deixou uma pegada na entrada do templo católico. Depois disso, virou vento e tenta até hoje derrubar a construção.


A “pegada do Diabo” na catedral de Nossa Senhora, em Munique (Alemanha)
A “pegada do Diabo” na catedral de Nossa Senhora, em Munique (Alemanha)

Mas em Munique, capital da Baviera, há uma outra marca deixada pelo Diabo que causa calafrio até hoje. 


Câmbio!

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Depois de 20 horas viajando acordado o tempo todo (carro, avião, escala, avião, trem), tudo o que eu queria era dormir. Eu precisava de umas 12 horas de sono, mas me dei quatro. Não queria perder tempo dormindo em Munique.


Não eram nem dez horas da manhã e eu e Carol já estávamos enfrentando um leve perrengue nas ruas do centro da cidade: chuva. Tínhamos que chegar na Marienplatz para encontrar o guia turístico que faria um Walking Tour (tour a pé) pela parte mais antiga da capital da Baviera.


Antes disso, tomamos um café da manhã de estação de trem. Enquanto Carol ficou no Bretzel com queijo, eu já mandei um Sanduíche de Schnitzel (pão com salada e filé de carne de porco) pra dentro. Minha intenção era resistir bem o tour de duas horas até o almoço.


A primeira parada foi logo no ponto de encontro, na frente da Nova Prefeitura. Um prédio no estilo neogótico enorme que tem uma tradição muito particular: o seu relógio dançante. Todos os dias as 11h, 12h e 17h, o relógio, que fica na torre principal do prédio, toca e seus bonecos em tamanho real reproduzem dois eventos históricos de Munique. A primeira história retrata o casamento do Duque Wilhelm V com Renata de Lorena, com direito a um torneio de justa. A segunda história representa o Schäfflertanz (Dança dos Tonelheiros), uma dança tradicional que foi realizada para celebrar o fim da peste em 1517. Todos que estavam ali no centro às 11h, pararam e apontaram suas câmeras para a torre. Fizemos o mesmo.


Carol seguindo o grupo pelo tour chuvoso nas ruas de Munique
Carol seguindo o grupo pelo tour chuvoso nas ruas de Munique

O passeio seguiu e, entre um chuvisco aqui e outro ali, paramos no segundo ponto do tour, a Igreja de São Pedro. A curiosidade dessa construção é que ela foi um dos pouco edifícios que resistiu (ou pelo menos uma parte dela resistiu) aos bombardeios da Segunda Guerra. Na verdade, estima-se que quase 90% da cidade foi destruída. Podemos ver os detalhes disso em uma maquete ao lado da Catedral de Nossa Senhora, no qual nosso guia, filho de mãe mexicana e pai alemão, explicava os horrores que a guerra causou na cidade.


“Claro que a lenda da pegada do Diabo não é verdade”, ponderou ele um segundo depois de ter perguntado se alguém teve coragem de pisar na pegada. Ninguém, inclusive eu, respondeu que sim. “Essa história foi fabricada para justificar a origem do dinheiro para a construção da igreja”, completou.


Catedral de Nossa Senhora
Catedral de Nossa Senhora

Para construir a catedral, os bispos começaram a vender indulgências aos católicos bávaros, uma ideia direta de Roma. Foi um sucesso e os fiéis que compraram seus perdões eram tantos, que o dinheiro para a construção do templo veio rápido. Inevitavelmente ela ficou conhecida como “A Igreja dos Pecadores” e para quebrar este estigma, alguém teve a ideia de fazer uma marca no chão com um dos pés, deixar ali e contar para todo mundo que o prédio religioso foi construído graças a espertezas de bispos que enganaram o Diabo. “Conte uma mentira mil vezes e ela se tornará verdade”, não é mesmo?


Mas é nessa mesma cidade que o Diabo enganou todo mundo. 

No dia 02 de agosto de 1914, o jovem fotógrafo Heinrich Hoffmann apontou a sua câmera para a multidão que lotava a Odeonplatz, no centro de Munique, que comemorava a entrada da Alemanha na guerra. Anos mais tarde, em 1929, Hoffmann reconheceu uma das pessoas em sua fotografia, era nada mais nada menos do que Adolf Hitler (já famoso naquela altura da história).


Essa foto foi usada milhares de vezes para demonstrar como o jovem Hitler era um fervoroso entusiasta da guerra, o que ajudava na construção da imagem do Füher como predestinado guia da pátria. Gerd Krumeich, uma das maiores autoridades da Primeira Guerra Mundial, acredita que a foto não passa de uma montagem. Segundo o historiador “esta foto se encaixa perfeitamente na estratégia de propaganda do partido Nazista”. E como dizia o ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels: “Conte uma mentira mil vezes e ela se tornará verdade”.


Odeonplatz tomada por uma multidão que comemorava a entrada da Alemanha na guerra em 1914. Detalhe para Hitler entre as pessoas. (Foto: Heinrich Hoffmann)
Odeonplatz tomada por uma multidão que comemorava a entrada da Alemanha na guerra em 1914. Detalhe para Hitler entre as pessoas. (Foto: Heinrich Hoffmann)

Hoje, essa mesma Odeonplatz está tomada por obras e equipamentos de show. Houve uma apresentação de música clássica no último final de semana e a desmontagem ainda não terminou. Mas ali, antes das obras e dos shows, havia uma marca nazista que, de verdade, foi o inferno na vida de muitas pessoas.


Paramos nosso tour em uma ruela chamada Viscardigasse. Ela tinha tudo para ser uma viela ordinária se não fosse um pequeno detalhe: um rastro no chão formado por paralelepípedos dourados. Essa ruazinha liga duas importantes ruas (uma de cada lado da Odeonplatz), sendo que uma delas é uma das vias mais importantes da história do Terceiro Reich.


Foi na Residenzstrasse (Rua da Residência), em 1923, que Hitler e um bando de nazistas que tentavam dar um golpe de estado foram emboscados pela polícia. Dezesseis nazistas morreram e Hitler acabou indo para a prisão por traição. Foi durante os nove meses presos - a pena inicial era de cinco anos -, que ele escreveu a “bíblia nazista”, sua autobiografia “Main Kampf” (Minha Luta). Graças ao seu livro, Hitler ficou cada vez mais famoso e com mais apelo popular e, em 1933, chegaria a ser nomeado Chanceler Alemão. 


O Putsch de Munique (tentativa de golpe) se tornou um dos mitos fundadores do nazismo e, dada a sua importância, a rua na qual Hitler foi emboscado ganhou uma placa para homenagear os 16 nazistas mortos. Esse monumento deveria ser reverenciado com a saudação nazi (“Heil Hitler”) todas as vezes por todas as pessoas que passassem por ali. O negócio era tão sério que oficiais da SS (uma espécie de polícia nazista) controlavam as saudações, multando quem não a fizesse.


Cidadãos de Munique fazendo a saudação nazista para a Placa na Residenzstrasse sob o olhar de um oficial da SS (Foto: autor desconhecido)
Cidadãos de Munique fazendo a saudação nazista para a Placa na Residenzstrasse sob o olhar de um oficial da SS (Foto: autor desconhecido)

Nem todo mundo era nazista na Alemanha, e muitas pessoas não queriam fazer a saudação a Hitler. Para isso, elas desviavam o caminho para não ter que passar pelo monumento. Esse caminho era a viela Viscardigasse, ou “beco dos insolentes” como ficou conhecida. O problema é que quem fosse pego fazendo isso com frequência era considerado traidor e levado a Dachau, um campo de trabalho forçado. Centenas de pessoas foram mortas por isso e os paralelepípedos dourados representam cada uma delas.

Rastro dourado do “Beco dos Insolentes”
Rastro dourado do “Beco dos Insolentes”

O último ponto de parada da tour foi a Hofbräuhaus, a cervejaria mais famosa da Alemanha. Obviamente eu e Carol precisávamos tomar uma cerveja ali. Mas eu queria ver algo a mais do que as canecas de um litro que deslizavam nas mesas comunitárias do salão. Foi nessa mesma cervejaria que Hitler discursava para centenas de alemães antisemitas. 


Parte interna da cervejaria onde Hitler discursava, a famosa Hofbräuhaus
Parte interna da cervejaria onde Hitler discursava, a famosa Hofbräuhaus

O nazismo (especificamente a comunicação nazista) foi tema dos meus estudos durante a pós graduação em História na PUC-SP. Estar no ninho do germe do Terceiro Reich é como caminhar pelas páginas de todos os livros que eu já li sobre o assunto. E como era de se esperar, a ferida deixada pelo ditador ainda está aberta. “Carol, foi aqui que o ‘Dito Cujo’ faz tal coisa…” e mesmo falando baixo e em português, sentia o constrangimento de pronunciar o nome de Hitler bem ao estilo Valdemort. As pessoas preservam a história, contam ela para não repetirem (embora tenha bastante gente que faz questão de esquecer), mas fazem isso com um gosto amargo na boca.


A pegada do Diabo é profunda aqui em Munique.


Câmbio, desligo!


Conhecimento é conquista.

-FS



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