Diário de Bordo #19 - O Professor do Mês
- Felipe Schadt
- 14 de mai.
- 7 min de leitura

> A sala de aula estava diferente. Na semana anterior, ela vivia enfeitada com tiras de papel crepom rosa e lilás, um cartaz com fotos de alunos em suas versões bebês e outro com recadinhos em post it simulando um "twitter analógico", estrelas amarelas acima da lousa e uma porta com letras recortadas e com brilho indicando que se tratava da sala do Terceirão. Os ornamentos estavam dentro de uma caixa de papelão ao lado da mesa do professor. Parecia uma mudança forçada.
"Sabe o que é, professor. É que tivemos que tirar os enfeites para o Dias das Mães que rolou na escola. Mas vamos colocar outra vez", disseram os alunos preocupados com a minha preocupação. Eu adoro o conceito daquela sala de aula toda temática. É como se fosse uma bandeira fincada no terreno da escola dizendo: "você está pisando em um território do Terceirão!".
Mas o enfeite que mais me chamava a atenção - sobretudo sua ausência - era um cartaz de papel camurça cor de rosa com os dizeres em cartolina roxa: "Professor do Mês".
"Inclusive, precisamos colocar o professor do mês na parede, já que o escolhido foi você!", me bombardearam com essa informação.
Câmbio!
...
Começar em uma nova escola nunca é fácil. Muitos medos passam pela sua cabeça, do "será que vão gostar de você?" até o "será que você vai gostar deles?". E esse medo fica ainda maior quando falamos do Terceiro Ano do Ensino Médio, porque de duas, uma: ou é uma turma que quer acabar logo com a escola ou uma turma que quer aproveitar cada segundo do último ano. Ou seja, os sentimentos são elevados à enésima potência.
Mas lá estava eu, numa terça-feira na The Joy School rumo às salas do ensino médio. Eu tinha acabado de dar duas aulas para os alunos do 8º ano e daria mais uma para a turma do 9º ano (todas de filosofia), mas tenho que confessar que a minha curiosidade estava toda voltada para o terceirão, que seria a minha quarta aula do dia. Planejei como quebraria o gelo, pensei em contar uma piada sobre mim, talvez. Eu era pura ansiedade.
Para o 9º ano, resolvi dar minhas credenciais no pátio, pois ali é um espaço bem legal para se abrir uma roda de conversa. Na ocasião tinha proposto para os alunos jogarmos Black Story, um jogo de adivinhação no qual a função é fazer perguntas fechadas para encontrar a solução do enigma. Jogo vai, jogo vem e o sinal do intervalo da turma que estava comigo bateu. Como estávamos lá fora, resolvemos ficar por ali mesmo e aproveitar o intervalo para continuar jogando. Até eu peguei meu pacotinho de Clube Social e me juntei a eles na merenda.
"Professor?" Era a inspetora interrompendo meu recreio para me dar um aviso. "O senhor não vai para a tura do terceiro do médio?". Eu dei um salto e não soltei um "P#*@ que o pariu" alto por muito pouco. Eu já estava uns dez minutos atrasado e saí correndo com a boca cheia de bolacha. "Eles vão me odiar", eu pensava a cada passo que eu dava no corredor rumo a sala deles.
Cheguei na porta e confirmei que a curiosidade deles em me conhecer era tão grande quanto a minha em conhecê-los. Já cheguei me desculpando pelo atraso, contei a verdade e joguei a culpa no "meu primeiro dia aqui". Eles riram. A piada sobre mim mesmo funcionou mais do que eu previa.
Algumas poucas semanas depois, vi uma sala bem diferente. Ela estava toda enfeitada com ornamentos de papel rosa e lilás. Aquilo matava a charada sobre eles estarem animados com a formatura. Eles podem até negar, mas eu sei que no fundo eles são a turma que tenta viver cada momento desse último ano de colégio em suas vidas. Eu consigo ver alguns alunos na próxima aula falando para mim "nada ver aquilo de 'estar aproveitando cada dia na escola', eu quero é ir embora daqui, sor!" Mas também imagino com muita clareza eles lendo isso, soltando um sorriso sincero e sendo obrigados a refletir que sim, eles vão sentir falta da escola.
De todos os ornamentos, o que mais me chamou a atenção foi um cartaz cor de rosa feito de papel camurça e complementado com duas faixas roxas com os dizeres escritos com letra cursiva: "Professor do Mês". Sabe aquele quadro que fica na parede de qualquer McDonalds com espaço para foto e nome do funcionário em destaque? Pois é, algo muito similar porém infinitamente mais fofo.
"Professor, você poderia mandar uma foto sua para a coordenação?", me pediram. Eu perguntei o motivo da foto fingindo que eu não sabia que era para, caso eu fosse escolhido, ter minha imagem estampada ao lado da lousa. "Mas só se o senhor quiser, viu? É que a gente pediu para todos os professores..." Eu disse que mandaria, mas confesso que não queria mandar.
Mesmo que às vezes eu tenha que disputar atenção com cubos mágicos, livros e o sono que parece não ter fim na vida de um adolescente, eu já me encontrava completamente envolvido com com a sala.
Assim que imaginei a perspectiva de que pudesse ser escolhido o "Professor do Mês", fiquei apreensivo com a possibilidade de não ser escolhido. Então, para não correr o risco, pensei em não enviar a foto, afinal, seria a desculpa perfeita que eu mesmo daria para mim caso meu nome não estivesse colado no cartaz de camurça. Esse pensamento intrusivo durou uma semana. Enviei minha foto para a diretora e revelei o motivo. A partir daquele momento, eu precisaria lidar com a minha ansiedade toda vez que abrisse a porta do Terceirão e olhasse para a parede que o cartaz de camurça ficava.
Passou fevereiro inteiro e, na primeira semana de março eu teria uma resposta sobre quem teria sido o professor escolhido. Eu queria que fosse eu, mas eu sabia lá no fundo que não seria. Minha relação com essa turma não era nada excepcional. Eles sempre demonstravam um interesse regular pelas minhas aulas, mas a gente se via tão pouco que nem dava tempo para criar qualquer tipo de vínculo que merecesse a honraria de ser o "Professor do Mês". Mas o cartaz de camurça continuava vazio, sem nenhum nome ou foto.
Março e abril inteiros se passaram e nenhum professor havia sido escolhido. Toda vez que eu entrava na sala e avistava o cartaz sem nada, eu pensava: acho que eles se esqueceram dessa brincadeira. Acreditei tanto nisso que eu mesmo esqueci e ele - ou o fato de eu não estar nele - não me assustava mais.
As aulas, a cada semana que se passava, ficavam cada vez mais envolventes. Nossa relação ia ganhando contornos de cumplicidade, no qual a aula serviu algumas vezes de espaço para desabafos e expurgos de frustrações. Perguntavam minha opinião sobre as coisas como quem valoriza o que um mestre pensa sobre determinado assunto. Meu papel era tentar encaixar toda essa energia para minhas aulas que ganhavam muito na hora dos debates.
Eles passaram a ver muito valor nas aulas de filosofia e sociologia por causa do vestibular. Eu sempre tento destacar assuntos que podem servir como repertório para futuras redações e eles adoram e anotam quando eu digo "vocês podem usar isso aqui quando o assunto for tal coisa". Isso também ajudou a gente a se conectar cada vez mais, até "Top 3 lousas mais organizadas" que eu recebi de um aluno. Mesmo que às vezes eu tenha que disputar atenção com cubos mágicos, livros e o sono que parece não ter fim na vida de um adolescente, nessa altura do campeonato eu já me encontrava completamente envolvido com com a sala.
Na semana passada, sai rápido do colégio após minha última aula (com uma turma do 9º Ano). Tão rápido que não deu tempo dos alunos do Terceiro me encontrar para me contar algo que, segundo eles, eu gostaria muito de ter ouvido. Acontece que eles ainda tinham uma aula no dia e não conseguiram sair para me encontrar enquanto eu estava no colégio. A novidade teria que ficar para a semana seguinte.
Na terça-feira não os encontrei, eles estavam fazendo uma espécie de provão que toda a escola faz. Eu fiquei com a turma do 8º ano a manhã toda. Mas na quarta, logo na segunda aula, entrei na sala colorida que, estranhamente, estava sem cor aquela manhã. Não havia enfeites, fotos, estrelas... Nada. Nem mesmo o cartaz de camurça estava lá. Protestei, preocupado. Mas fui acalmado com a explicação que a situação era provisória e que eles colocariam todos os enfeites novamente.
"Inclusive, precisamos colocar o 'Professor do Mês' na parede, já que o escolhido foi você!", me bombardearam com essa informação. "Eu?", foi a reação mais genuína que tive. Algumas alunas tiraram o cartaz da caixa de papelão que ele estava guardado e me mostraram os resquícios do meu nome colado nele: L I P. Originalmente meu nome estava colado com post it, um para cada letra de F E L I P E.
Eu me derreti. E nem escondi o derretimento. Agradeci, sorri, agradeci outra vez, olhei para o nome incompleto, agradeci, emprestei meu canetão para as alunas completarem meu nome no cartaz, agradeci mais uma vez. Eu estava muito feliz com aquilo.
"E a gente queria ter te avisado na quarta passada, mas não conseguimos sair da aula e você já tinha ido embora", me explicaram. Eu vou embora às 13h20, mas o Terceiro ainda tem mais uma aula, até as 14h10. "Bom, então hoje na última aula eu quero tirar uma foto com isso já que eu ficarei com vocês à tarde". Quis o destino que eu tivesse que substituir justamente a professora da aula na qual eles tentaram e não conseguiram me encontrar. Eles comemoraram, era a cereja do bolo.
Fiquei tão derretido que planejei como eu teria uma foto daquilo. Após a proibição do uso dos celulares nas escolas, as coisas ficaram mais restritas. Eu mesmo uso meu celular apenas para acessar o sistema de chamada. Mas a ocasião era especial e por isso fui perguntar para a Talita, a secretária/recepcionista/faz tudo daquela escola: "Posso tirar uma foto?", ela disse um claro tão grande que me senti bobo por ter perguntado. Mas eu também queria eles na imagem e, para isso, o pedido precisou ser para a diretora que, com muito tato e delicadeza disse que se os próprios alunos autorizassem, eu podia sim. E claro, contei o motivo com um sorriso no rosto e ganhei um parabéns com outro sorriso.
Meu nome foi colocado no cartaz de camurça com a ajuda de uma fita crepe. A Talita já estava na sala pronta para fazer o registro e os alunos já tinham lotado uma folha de papel com seus nomes autorizando a foto (pedi o documento por se tratar de menores de idade e por querer que a foto viesse parar aqui no blog). Tudo pronto. Xis!

Acho que eles gostam de mim. Eu só não sei se eles gostam de mim tanto quanto eu gosto deles. Espero que sim.
Câmbio, desligo!
Conhecimento é conquista.
-FS
Comments