
> Nós temos um certo prazer pela violência. Neurocientistas explicam que ver atos de violência na TV, por exemplo, é prazeroso porque a temos a certeza de que naquele momento em que o ato violento está acontecendo, nós não seremos os alvos. Tudo certo ver cenas de barbárie quando estamos protegidos dela. Nossa tara por assistir esse tipo de espetáculo nos acompanha desde muito tempo.
Isso explica as praças europeias lotadas de gente para ver alguma execução pública. Era quase que um programa de família ir até o centro da cidade, ouvir o magistrado lendo a sentença e ver o condenado sendo enforcado, queimado ou guilhotinado. Essa violência toda causava uma catarse, um convite ao expurgo dos sentimentos mais ferozes que temos dentro de nós. Ao fim da execução, o alívio de ter soltado todo o ódio a lá William Foster e a espera pelo próximo condenado.
Mas esse tipo de punição não servia só de entretenimento aos cidadãos medievais. Era na verdade um aviso. Uma demonstração de poder de uma estrutura sobre a cidade. Uma clara intimidação. Um alerta de que qualquer um que ousar quebrar as regras estabelecidas, terá o mesmo fim.
Felizmente esse tipo de espetáculo caiu em desuso. Não caía bem para uma sociedade que queria ser civilizada promover esse horror primitivo. As execuções em público foram substituídas por outros castigos. Mas na cibercultura, essa prática vê seu apogeu em pleno 2020. Sim… nós promovemos linchamentos seguidos de execuções virtuais quase que todos os dias. E como nossos antepassados medievais, nós adoramos assistir isso. Mais… o que atrai a gente mesmo, é poder tacar a nossa pedra no condenado da vez.
A lógica é bem simples. Alguém comete uma falha dentro ou fora das redes. Imediatamente, o público fica sabendo e há um linchamento virtual em praças como o Twitter, Instagram ou Facebook. Chamamos isso de cancelamento. Inclusive fica a dica, já falei sobre cancelamento no torcidinha de número três. Para ouvir clique aqui.
O cancelamento virtual é a guilhotina 2.0. A grande diferença entre essa e a guilhotina utilizada para decapitar Luis XVI, é que na versão virtual, todos nós ajudamos a puxar a corda que libera a lâmina. Lembra que eu falei no episódio anterior de que os costumes não sumiram por causa da internet, eles apenas mudaram a sua forma dentro da cibercultura? Pois é… Com a execução em praça pública é a mesma coisa.
Enquanto na idade média nós éramos apenas espectadores da violência, na virtualidade nós participamos dela acusando, julgando e executando o condenado da vez. Se já sentimos prazer em apenas ver… imagina agora que podemos participar. E participar do conforto do nosso lar sem nos expor ao risco de sermos agredidos.
Mas como escolher quem será o condenado? Basta esperar por algum desvio de alguém, sobretudo de famosos, para afiarmos as lâminas das guilhotinas virtuais. Como hienas salivastes que rondam a futura presa a espera do primeiro vacilo para atacar. Porém, algumas pessoas não se contentaram com o papel de promotor, juiz e carrasco. Encontramos uma nova modalidade de ação. Somos agora os vigilantes que vigiam os vacilos. Esse pacote de superpoder é conhecido como Exposeds.
Em Jundiaí, meninas resolveram expor nomes de uma série de rapazes que, segundo elas, praticavam relacionamentos abusivos. A lista vinha com o nome acompanhado de símbolos que significavam o que o garoto havia feito: de abuso psicológico, vazamento de nude de outras meninas e até estupro. Elas vigiaram, acusaram, julgaram e executaram.
Uma página no Twitter resolveu expor conversas de um baterista de uma banda famosa e de um youtuber de renome nacional nas quais indicavam que ambos praticaram atos de pedofilia. Essa página que tem “exposed” no nome, também vigiou, acusou, julgou e executou. Todos esses casos são exemplos perfeitos da lógica do Vigiar e Punir.
Michel Foucault vai nos trazer a ideia do efeito pan-óptico. Pan-óptico é uma palavra que significa visão panorâmica e foi pensada pela primeira vez por um jurista e filósofo chamado Jeremy Bentham. Ele pensou como seria um modelo ideal de fiscalização. Imagine um grande pátio e no centro dele uma torre. No alto dessa torre, janelas com efeito fumê, na qual quem está fora não consegue ver o que se passa dentro dela. Além da torre, o pátio teria uma construção envolta dela em forma de ferradura e nessa construção estariam celas, uma em cima da outra, lado a lado. Quem estivesse na torre poderia ver tudo o que se passava em todas as celas. Mas quem estivesse nas celas não sabia quem ou quando estava sendo vigiado.
Foucault entende, portanto, que esse modelo faz com o ocupante da cela se auto vigie o tempo inteiro, pois ele nunca sabe quando ou quem está o vigiando. Esse medo de ser pego a qualquer momento é o que promove a criação de “corpos dóceis”, o que é isso? Pessoas que andam na linha por causa do medo de serem pegas. E esse medo é constante. Essa ideia é muito bem explorada pelo essencial livro de George Orwell, 1984.
O que seria a internet se não um grande pan-óptico, onde todos nós estamos sendo vigiados mas nunca sabemos por quem ou quando. Mais, além de sermos os sujeitos vigiados nas celas, também fazemos a vez do vigia que está na torre. Vivemos, portanto, em um estado perpétuo de vigiados e vigilantes.
Os Exposeds são a representação máxima desse conceito, só que ampliada para o que acontece depois da fiscalização alheia. Vigiamos, acusamos, julgamos e executamos ao mesmo tempo que estamos sendo vigiados, acusados, julgados e executados.
As meninas de Jundiaí foram muito aplaudidas pela atitude de revelar para toda a internet quem são os meninos que foram abusivos com elas numa clara intenção de alertar outras meninas a não se relacionarem com eles. Mas o tiro, saiu pela culatra. As meninas, ao exporem os nomes publicamente, deixaram de ser só vítimas para também serem vilãs. Segundo alguns jornais da região de Jundiaí, alguns pais já entraram com processo contra as meninas por difamação. Muitos especialistas dizem que se as meninas levassem essas denuncias de abuso até a polícia sem expor os garotos publicamente, as chances deles serem punidos seriam maiores.
O caso do baterista e do youtuber pode ser um pouco diferente. Como eles são pessoas famosas, coloca no meio da agenda pública discussões sobre pedofilia que são importantes de serem discutidas. O baterista foi retirado da banda e o youtuber perdeu sua conta no YouTube além dos contratos. Caso seja comprovado as acusações, eles provavelmente sofrerão, além do cancelamento virtual que já aconteceu, as devidas penas da lei.
Esse poder que temos na internet é muito grande. Vigiar, acusar, julgar e executar são ações que jamais teríamos fora da virtualidade. Não todas ao mesmo tempo. Para julgar alguém, por exemplo, temos que, no mínimo, saber o que é justiça e será que as pessoas que julgam na internet sabem o que é justiça?
Por outro lado, não tem como não se indignar com os casos que eu falei aqui. Relacionamentos abusivos, estupro, pedofilia… Todos condenáveis, absurdos e que geram revolta. E se não houvesse alguém que vigiasse, como foi o caso das meninas de Jundiaí, eles não viriam a tona.
Esse pacote de superpoderes chamado de Exposed deve ser problematizado. Mas talvez a gente não queira fazer isso. Tenho a impressão que gostamos desse superpoder. Ainda sentimos prazer em ir até o centro da praça pública virtual e ver perfis serem torturados e executados. Gostamos de vigiar, gostamos de acusar, gostamos de julgar e gostamos de punir. Afinal, é o que fazemos o tempo todo na internet. E é claro… não podemos ter esse superpoder fora dela, por isso amamos ter um local no qual possamos exerce-lo.
Vou ter que parafrasear o Tio Ben. Grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Você está pronto para ser responsável por vigiar alguém, acusá-lo de algo, conduzi-lo até o centro da praça, dar o veredito, puxar a corda da guilhotina e conviver com isso depois?
Conhecimento é Conquista
-FS
Comments