> Estamos diante de uma das maiores crises sociais dos últimos tempos. E com ela, vem os maiores desafios a serem enfrentados. Desafio sanitário, político, científico… Mas nenhum deles é tão complexo como o desafio econômico. Isso porque ele é conflitante com todos os outros. O exemplo mais claro que estamos debatendo agora é manter ou não manter o isolamento. Uns defendem a continuação da quarentena horizontal, ou seja, isolamento social de todos para diminuir o contagio do COVID-19 entre as pessoas e evitar um colapso no sistema de saúde, além das milhares de mortes previstas e vistas em casos na Itália, Espanha e Estados Unidos. Outros, por sua vez, acham que esse modelo de reclusão causará um caos econômico muito pior, pois deixar grande parte do comércio e indústria fechados, impede o dinheiro de circular, causando demissões e falências. Eis um típico dilema ético. E já que é um dilema ético, usemos a ética para tentar… E eu disse tentar resolvê-lo. Primeiro que precisamos entender que ética não é uma lista de coisas a se fazer ou a não se fazer. Essa coisa de “receita pra vida” ou “manual de instruções da existência”, é absurda e extremamente ineficaz. Prometo que um dia faço um episódio só explicando isso. Por sua vez, a palavra ética já sofreu inúmeras modificações em seu significado. Desde os gregos, passando pelos medievais, chegando aos modernos e estacionando nos contemporâneos, a ética foi vista e usada de várias formas diferentes. O jeito que entendemos ética hoje não tem nada a ver, por exemplo, como Aristóteles entendia. Mas em toda a história a ética sempre fez uma mesma pergunta: Como viver bem? E será essa pergunta a base de nossa conversa de hoje. Quando encaramos a questão “O que devo fazer para ter uma vida boa?”, precisamos fazer certas atribuições. A primeira é que essa pergunta nunca é feita a partir de uma pessoa só. Se você convive com alguém ou faz parte de uma sociedade, essa pergunta deve ser feita no plural. “O que devemos fazer para termos uma vida boa?”. E isso já muda tudo, pois para pensar na resposta, todos os envolvidos devem participar do debate. E se todos participam, a pergunta ganha mais um up grade, pois a vida boa passa ser a boa convivência, logo ela ficaria assim: “O que devemos fazer para conviver bem?”. Essa adaptação escancara a ideia de que as minhas ações influenciam nas ações daqueles com que convivo, logo, o convívio é a chave para se responder essa questão. Vamos torcer o nosso dilema ético da vez a partir dessa pergunta. “O que devemos fazer para conviver bem? Manter a quarentena ou liberar a economia?” Se você quiser, podemos ser mais sofisticados: “O que devemos fazer para conviver bem? Diminuir os danos causados pelo COVID-19 ou impedir um colapso econômico?”. Ou, para colocar pimenta nessa sopa filosófica, também poderíamos perguntar assim: “O que devemos fazer para conviver bem? Salvar vidas do COVID-19 ou salvar vidas do caos econômico?”. Pronto… acho que agora você tem aí opções suficientes para entender esse dilema ético. Essa questão é uma pergunta de ordem consequencialista. Ou seja, em ambos os casos teremos um resultado fundamental. Trocando em miúdos, a escolha A vai causar resultado X e a escolha B, um resultado Y. O que importa nisso tudo é: qual resultado queremos alcançar? Perder pessoas para o vírus ou perder nossos empregos para o colapso econômico? Vou apresentar para você dois grandes filósofos consequencialistas: Nicolau Maquiavel e John Stuart Mill. O primeiro é o mais famoso. Notável pensador florentino, trabalhou durante parte da sua vida no seio político de Florença, entres os séculos XV e XVI. Considerado o pai da ciência política moderna, Maquiavel ganhou fama entre nós por causa do seu mais famoso livro: O Príncipe. Maquiavel acreditava que viver bem é realizar boas condutas. A pergunta da vez portanto é “Qual é a boa conduta?”. A resposta é: a realização do objetivo proposto. Hora dos exemplos. Em uma época da minha vida eu trabalhei numa ótica. Lá havia eu, meu gerente e outro vendedor. Tínhamos uma meta mensal de vendas a ser batida e o outro vendedor era ávido a sempre cumprir esse objetivo. Uma vez, entrou um senhorzinho na ótica buscando um novo par de óculos. O seu José mostrou a receita para mim e disse de cara que não tinha muito dinheiro para gastar. Entendendo a necessidade do cliente, ofereci as lentes e as armações mais baratas da loja, sendo completamente honesto ao dizer que existiam opções melhores, mas que não feriam tanta diferença para ele. Satisfeito, escolheu a armação e a lente que cabiam no seu bolso e passou a compra no cartão de crédito em 10 vezes. Ele ficou tão feliz com meu atendimento que me indicou para o seu Severino, um amigo que também precisava de novos óculos. Porem, quando seu Severino foi até a loja, eu não estava e o outro vendedor quem o atendeu. Com problemas oculares muito similares ao do seu José, o seu Severino esperava gastar a mesma quantia que o amigo, mas o outro vendedor tinha um objetivo: bater a meta. Disse para o seu Severino que a lente mais em conta da loja, que serviria para o seu caso, não o ajudaria. Mais, disse que a lente barata poderia prejudicar sua visão e comprometer mais seu problema. “Olha seu Severino, é melhor o senhor comprar a lente mais moderna, porque o senhor sabe né, o barato sai caro depois”. Assustado com a avaliação do vendedor, o seu Severino acabou comprando a lente mais moderna e sua compra, no final, ficou 6 vezes mais cara do que a do seu amigo José. Eu fui honesto, mas vendi pouco. O outro vendedor mentiu, mas bateu a meta. Adivinha com quem o meu gerente ficou mais feliz? Pois é, com o outro vendedor. Tentei argumentar que houve desonestidade e meu gerente não ligou muito. Ele disse: “No ramo das vendas, devemos ser pragmáticos”. Eu só entenderia essa frase anos depois. O pragmatismo é o famoso “foco no resultado”. Não importa como você fez, o importante é atingir o objetivo. Agora você entende a celebre frase “os fins justificam os meios”. O objetivo é vender, então, faça o que for preciso para vender. Agirá bem aquele que alcançar o objetivo, independentemente do caminho que tomou. Esse é um típico pensamento pragmático. E parece ser algo abominável… maquiavélico… O maquiavélico é o sujeito que não mede esforços para alcançar o objetivo dele. Quando você cola numa prova para passar de ano. Se seu objetivo é passar de ano, Maquiavel o aplaudiria. Quando você fura o sinal vermelho para chegar a tempo na reunião. Se seu objetivo era chegar a tempo em uma reunião, mais aplausos. Quando você tem um objetivo e não se importa com os meios para chegar lá e no fim consegue, você agiu bem. Já John Stuart Mill pensaria um pouquinho diferente. O pensador inglês do século XIX, também teve contato com a política britânica onde pode colocar sua filosofia moral em prática. Liberal, Mill tinha uma máxima: Sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano. O que ele quer dizer com isso, você pode fazer o que quiser com a sua vida, contudo que não afete os outros. Os fumantes adoram esse pensamento, pois quando fumam sozinhos, não prejudicam ninguém a não ser eles mesmos. Porém, Mill não era só preocupado com o prazer individual. Ele se preocupava com o prazer do máximo de pessoas possíveis. Para ele, a boa conduta também era focada no resultado. Agirá bem quem conseguir alcançar o seu objetivo, a diferença é que o objetivo sempre deve ser proporcionar prazer ao máximo de pessoas possíveis. Diminuição de dor e maximização do prazer. Exemplos: A primeira lembrança que tenho de pescaria com o meu pai foi um pouco traumática. Fomos até um pesqueiro e no dia o mar, ou melhor, o lago artificial não estava para peixe. Sem nenhuma fisgada no anzol estávamos quase desistindo até que, veio, na minha varinha o sinal tão aguardado. A boia desapareceu e a varinha envergou. Entusiasmado meu pai me incentivava a puxar e eu, no auge dos meus oito anos, tentava trazer o peixe para fora d’água. Após um pequeno esforço e ajuda do meu pai, vi uma bela tilápia. Assim que tiramos do anzol, segurei ela pela calda e posei para uma fotografia. Feliz com a minha caça, olhei para meu pai e perguntei se poderia devolvê-la para o lago. Meu pai sorriu e disse que aquilo seria nosso jantar. Eu fiquei muito triste porque eu não queria que o peixe morresse. Mas meu pai me explicou que as vezes, algumas coisas ruins precisam acontecer para coisas boas acontecerem depois. No caso do peixe, ele morreria para servir de alimento para três pessoas. A morte do peixe, portanto, passou a ter uma utilidade maior. O utilitarismo é assim, essencialmente matemático. O objetivo era conseguir o jantar para três pessoas, um peixe teve que morrer, três pessoas felizes justificam um peixe infeliz. Logo, matar a tilápia para alimentar minha família foi uma conduta boa. Pense na medicina. Quantos ratinhos são testados em laboratório para que a humanidade possa desfrutar de um remédio que salvará milhões? Segundo a Funcional Health Tec, 322 milhões de pessoas no mundo usam antidepressivos, remédio que ajuda no tratamento da depressão. Ratinhos foram submetidos a quase afogamentos e levados ao estresse máximo para se obter a base hormonal para criação do antidepressivo. Valeu a pena maltratar os camundongos? Para Stuart Mill, sim! Muito bem. Agora temos o mínimo de referencial para pensar no nosso dilema principal. Manter a quarentena e minimizar as mortes pelo COVID-19 ou encerrar a quarentena e não colapsar a economia do país? Primeiro vamos pensar no objetivo. E todos concordam que o resultado esperado é causar o mínimo de mortes possível. Manter a quarentena significa desacelerar e interromper a transmissão do vírus, por outro lado, isso fará com que a economia fique estagnada, empresas fechem, pessoas percam empregos e, sem dinheiro, também sucumbam. A chave do castelo, para uma filosofia consequencialista é calcular os danos. No pragmatismo a boa conduta será, aquela que causar menos danos para você, já no utilitarismo, a boa conduta será aquela que causar menos danos para o maior números de pessoas. Os grandes empresários possuem um discurso extremamente utilitarista, pois para eles ha outras coisas mais importantes que a vida, como o lucro. Eles nivelam todas as vidas como tendo o mesmo valor e fazem um calculo simples: é preferível morrer 5 a 7 mil pessoas agora do que 20 milhões de pessoas não terem dinheiro para comer depois. A lógica utilitarista é clara nesse ponto e favorece esse discurso. Mas a preocupação com a vida alheia é uma camuflagem para a preocupação com a própria fortuna. O discurso utilitarista desses mega empresários, na verdade é muito mais maquiavélico do que pensamos. O objetivo deles é que a economia não entre em colapso porque se isso acontecer, eles também perdem muito. O problema do consequencialismo é que ele transforma vidas humanas em números. Milão pensou como os mega empresários brasileiros e fez uma campanha para reabrir comércios e locais públicos. Uma campanha muito similar a que o governo brasileiro quer implantar aqui. Até o slogan é parecido. Na Itália era: Milão não para; aqui no Brasil é “O Brasil não pode parar”. Bom, um mês após a decisão, Milão amargou 5,4 mil mortes pelo novo coronavírus. Pragmáticos e utilitaristas enxergam números… Mas e quando um desses números é um parente ou amigo nosso? 5,4 mil mortes significam, na verdade, 5,4 mil histórias que deixaram de existir. 5,4 mil pessoas que tinham famílias, relacionamentos, sonhos, medos e desejos. E o problema todo, penso eu, está exatamente aqui. Tentar resolver essa questão utilizando o consequencialismo é, sem sombra de dúvidas, mais prática. Digo isso porque como dizer que uma vida vale mais do que a outra? Tendemos a pensar que a vida dos próximos a nós vale mais do que as vidas que estão distantes a nós. Você se espanta com 4,4 mil mortes, mas você sente muito mais a uma morte que aconteceu próximo a você. Portanto, nivelar a vida passa ser o caminho mais lógico. Porém, para quem entende que a vida não é moeda de troca, nem mesmo para salvar outras, a lógica consequencialista é um caminho intragável. Qual é a boa conduta que devemos tomar então? Não gosto de dar conclusões, mas dessa vez eu vou me aventurar. Vi uma postagem no Twitter que me inspirou. Dá para salvar a economia e manter a quarentena com um pensamento totalmente consequencialista. Veja: Já que os mega empresários e banqueiros, e estou falando aqui de gente bilionária, estão tão preocupados com a vida das pessoas que ficarão sem emprego e sem dinheiro, sugiro que cada um deles sacrifique a própria fortuna para continuar pagando seus funcionários e ajudando pequenos empresários e autônomos a manterem seus negócios. Enquanto isso, o dinheiro do fundo partidário, que também está na casa dos bilhões de reais, iriam direto para criação de leitos para atendimento hospitalar aos infectados por COVID-19. Assim, não teremos nem as 5 ou 7 mil mortes e nem os 20 milhões de desempregados. Haveria sacrifício, mas seria o sacrifício de uns 50 bilionários em nome de 200 milhões de pessoas.
Lógico o bastante para você? Conhecimento é Conquista
-FS
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