>Tenho a impressão de que todo mundo já sentiu, alguma vez na vida, aquela vontade de falar tudo que pensa para alguém. Sem pudor, limites ou censura. Penso que todos nós já enfrentamos uma situação de querer muito colocar os pensamentos pra fora de uma forma irrestrita. De um lado temos os defensores da liberdade total de expressão. Pessoas que defendem que todos nós temos o direito de falar tudo o que a gente quer e defender qualquer tipo de ideia, por mais absurda que ela pareça. Do outro lado, há pessoas que acreditam que tudo tem que ter um limite, inclusive a liberdade de expressão. A questão é: somos livres para falarmos o que a gente quer? Bom... Eu não tenho nenhuma pretenção em dar a resposta para essa pergunta. O que eu quero mesmo é fazer você pensar e, se tiver um pouco de sorte, chegar a alguma conclusão. Se quiser se aventurar nisso, vem comigo. Vai ser legal.
Vamos começar pensando na nossa condição de liberdade. O que nos torna livres? Diferente dos animais, os seres humanos tem uma premissa muito interessante, que é a nossa autonomia em relação a nossa natureza. Veja: uma formiga operária não pode simplesmente organizar uma greve ou se candidatar para ser uma formiga soldado. Ela nasceu com características próprias para trabalhar na manutenção do formigueiro e deve, segundo a sua natureza, obedecer seus atributos. Uma formiga não é livre para decidir o que quer ser da vida, ela é simplesmente escrava de sua própria natureza. Isso também acontece com um cavalo marinho, com uma jiboia ou com um condor. Nenhum animal é livre para subverter a própria natureza. Exceto nós.
O filósofo alemão Immanuel Kant nos ensina que os seres humanos são dotados de uma condição única que permite essa subversão. Kant vai chamar essa condição de Razão. Nós podemos pensar sobre a nossa existência e, com isso, deliberar e escolher o que fazer. Você pode nascer com talento para ser um excelente pintor ou uma excepcional cantora, mas se você decidir escrever livros ao invés de pintar quadros ou construir foguetes ao invés de ter uma banda, você pode. Então nossa liberdade parte deste princípio: podemos pensar e, ao pensar, decidir o que fazer independente da nossa natureza. Por isso somos animais racionais.
Bom... já temos aqui um excelente ponto de partida. Somos livres porque podemos pensar. E eu iria ainda mais fundo. Se somos livres para pensar, nosso pensamento também é livre? Podemos pensar o que quisermos? Penso que sim. Todos nós podemos pensar no que quisermos pensar. E as vezes, até pensamos o que não queremos. Quem nunca se pegou pensando em algo de maneira inconsciente? Sabe quando você pensa em algo que você, conscientemente, não queria pensar?
Uma vez, no trabalho, eu me peguei pensando na demissão de uma pessoa que trabalhava comigo. Eu não queria que ela fosse demitida, mas pensava o quão o trabalho ficaria melhor se a pessoa em questão não estivesse mais nele. Fiquei com vergonha do que passava pela minha cabeça, mas não tinha muito o que fazer, o pensamento estava ali, pronto para despertar a qualquer momento. E essa situação ganhava força na minha mente quando eu era obrigado a conviver com a pessoa em reuniões, por exemplo. Muitas vezes eu queria pedir a palavra e dizer em alto e bom som: "Você é uma pessoa péssima e deixa o ambiente de trabalho insustentável! Se eu tivesse poder pra isso, já teria te mandado embora!"
Mas eu nunca falei. O motivo? Bom, eu sabia que ninguém poderia limitar o meu pensamento, mas externá-lo em palavras, tornar público o que se passa na minha cabeça já é outra história. Uma coisa é eu pensar outra bem diferente é dizer. Quando penso não causo mal nenhum, o problema é quando eu verbalizo. "Mas se você é livre para pensar, porque não pode ser livre para dizer?"... Lembra do Kant, que disse que nós temos a razão para deliberar sobre nossas escolhas? Pois é... Eu deliberei e escolhi não falar. Percebi que eu era livre para pensar mas não para falar. Isso porque como ninguém sabe o que eu penso, não serei julgado pelo que pensei. Agora quando eu falo, todos que ouviram podem fazer qualquer tipo de juízo de valor sobre minhas palavras.
Então a liberdade tem um limite. E é isso que incomoda algumas pessoas, sobretudo as que enxergam o mundo com a ótica liberalista. Um dos grandes nomes do liberalismo, o inglês John Stuart Mill, vai nos ensinar que: "sobre o próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano", ou seja, ninguém pode dizer o que você deve ou não fazer com o que você pensa e o que você fala. Ele ainda vai ser conhecido na filosofia pela defesa da liberdade para buscarmos a felicidade. Se não pudermos realizar alguma ação que nos faça feliz, então não somos sujeitos livres e, portanto, escravos da infelicidade.
Porém, o mesmo filósofo é claro em dizer que você deve ser livre para buscar a felicidade, porém se a sua felicidade prejudicar outra pessoa, você não deve fazer. O melhor exemplo disso é alguém que fuma. Se fumar causa alegria te causa alegria, fume. Sobre seu corpo e mente, você é soberano. Mas se você fumar em um lugar fechado, obrigando outras pessoas que não querem fumar a inalar a fumaça que sai do seu cigarro, aí você está extrapolando os limites do seu corpo e atingindo o corpo alheio. Trocando em miúdos: a sua liberdade termina quando começa a do outro.
Isso deixa claro que, quando você pensa em algo, por mais abominável que seja, isso não prejudica ninguém. Por isso você é livre para pensar no que você quiser. Mas quando você verbaliza esse pensamento ou transforma ele em ação, você acaba prejudicando alguém, e por isso, ultrapassando o limite da liberdade estabelecida. Parece, portanto, que a liberdade irrestrita, ou seja, sem nenhum tipo de consequência, é impossível em uma sociedade. Em algum momento, sua liberdade vai se confrontar com a liberdade do outro. E aí, o que fazer?
Mas será que quando você fala o que quer, você está exercendo sua condição de ser livre ou está reforçando justamente o contrário, de que você é apenas um escravo da sua natureza?
Pra entender isso, vamos recorrer a Platão. Em um de seus diálogos mais famosos, Fedro, Platão demonstra, entre outras coisas, o que pensa sobre a condição do ser humano como sujeito racional. Ele divide o homem em duas partes: o corpo e a alma. O corpo é o responsável pelos sentidos físicos e a percepção do mundo através deles. Já a alma é responsável pela razão. O corpo que sente versus a alma que pensa.
Então ele vai dividir a alma em mais três partes: a Razão, o Espírito e o Apetite. A alma racional é responsável pela busca da verdade, da lógica, do fato. É a que, para Platão, deveria ter o maior controle sobre o homem. Já a segunda parte da alma, o Espírito, é responsável pelos nossas emoções e é, para Platão, uma alma inferior à primeira. Por fim a alma que deseja que é responsável pela busca do prazer o que, para o filósofo grego, é a parte mais baixa da alma.
Para explicar isso, vou utilizar a mesma alegoria que Platão utiliza, a alegoria da carruagem. A Razão é o cocheiro que está sentado em uma carruagem puxada por dois cavalos. Um dos cavalos é o Espírito e o outro é o Apetite. O primeiro cavalo é dócil e o segundo é praticamente selvagem. Agora imagine a sua razão tentando guiar a sua vida com esses dois cavalos que precisam ser domados?
Se você é uma pessoa que quer ser livre a todo custo para fazer as coisas que te dão prazer, então, no fim das contas, você não é livre, é apenas escravo dos seus apetites. Então, ser livre para falar e fazer o que quer, nessa ótica platónica, é o triunfo do apetite sobre seu espirito e sua razão. Kant havia dito, somos livres porque somos racionais. Oras... se você obedece só os seus impulsos e apetites em busca da felicidade, você está exercendo tudo, menos a sua liberdade.
Porém se você é livre só para pensar, ou seja, a liberdade tem um limite, então ela não é liberdade no fim das contas.
Seria, portanto, a liberdade uma mera ilusão? Sugiro que você pense sobre isso, afinal você é livre para pensar...
Conhecimento é conquista! -FS
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