A tentativa de mascarar homofobia com o delírio cristão.
> Depois das inúmeras polêmicas (1) e até um atentado a base de coquetel Molotov (2), o Especial de Natal do Porta dos Fundos acaba de ser censurado (3) por representar Jesus Cristo como sendo homossexual. A justificativa é que isso fere a fé cristã. Pelo visto, cristãos conservadores de todo país saíram em defesa de Deus, pois parece que de alguma forma eles sabem que o Todo Poderoso não gosta de ver seu filho na TV como um gay. Mas… Como é que eles sabem disso?
Me permita filosofar (afinal, é o intuito desse blog). E vem comigo, se assim for de sua vontade.
Os gregos a partir de Aristoteles tinham definido que toda a vida estava ligada a um universo ordenado e finito que eles nomearam de Cosmos. Era a partir dele que a vida se dava e se organizava. Para provar sua existência, os gregos utilizavam do método contemplativo, ou seja, para entender o Cosmos, bastava contemplá-lo. E eles tinham certo sucesso. Veja, eles acreditavam que toda a natureza (incluindo os seres humanos) tinha uma função clara para o funcionamento do universo. Tal como uma máquina, tudo obedecia uma ordem universal: a árvore dá frutos; as lagartixas controlavam a população de aranhas; as abelhas polinizavam… Observar isso era constatar que o Cosmos estava presente.
Séculos depois, uns seis mais ou menos, um grupo específico de pessoas começava a ganhar espaço no tecido social ocidental da época. Após 300 anos da morte de seu maior líder, os cristãos não se interessavam pelo Cosmos e de qual método era necessário para contemplá-lo. Eles queriam mais. Eles queriam saber como contemplar o criador do Cosmos. Eles queriam contemplar Deus!
Se para os gregos bastava observar a natureza, para os cristãos não. Como observar Deus? Não era possível, pois Deus não se materializava de maneira concreta. “Vejam, eu sou Deus. Contemplem-me”. Não funcionava assim. Portanto outro método de contemplação se fazia necessário e já que não podiam observar Deus, resolveram então dialogar com ele.
Você provavelmente pensou no absurdo que foi a ideia. Se observar já era difícil, como assim dialogar? Não dava para bater na porta da casa de Deus e dizer “E aí, God! Bora bater um papo para eu te entender?” Enquanto Deus era vivo, isso até era possível, mas lembre-se, ele havia morrido uns três séculos antes pregado numa cruz. Mesmo absurda, a ideia não era sem lógica. Cristo havia deixado ensinamentos e seria a partir deles que poderíamos entender Deus.
Mas a Bíblia nunca deu conta de responder todos os questionamentos e os ensinamentos do Messias não preenchem, nem de longe, a totalidade do livro. Os cristão partem para o método dialógico. Como? Simples: por meio da oração. Bastava ajoelhar, juntar as mãos, ligar no Deus0800, e pronto. Do outro lado da linha alguém atendia e você falava com Ele. O problema é que Deus não respondia e você falava com uma espécie de secretária eletrônica celestial.
A oração foi, portanto, o método encontrado pelos cristão de contemplar Deus. Vamos ilustrar com exemplos: João quer respostas sobre sua plantação que não vingou e saber se deve ou não continuar plantando milho. Como já disse, Deus não costumava responder, e João pedia para que Ele se manifestasse de alguma forma. Nesse instante, começa a chover e João interpreta isso como sendo a resposta do Criador; outro exemplo: Ana está desesperada por respostas sobre a sua falta de trabalho e quer saber se deve continuar esperando por algo ou tentar a sorte em outra área. Ora e, depois de alguns dias da oração, recebe um e-mail de alguém oferecendo o emprego que queria. Ela interpreta isso como sendo a resposta do Divino.
A oração se torna extremamente conveniente, pois você fala a vontade, não tem nenhuma resposta e qualquer acontecimento pós oração é passível da interpretação de que foi uma resposta celeste. E não sei se você notou, mas falar com Deus e “receber” respostas é absurdamente poderoso, pois você poderá interpretar qualquer coisa como sendo uma resposta de dEle e usar isso para favorecer a você, ao seu grupo ou à sua ideologia.
Imagine você interpretar que a chuva foi a resposta divina para você continuar plantando, ou a oferta de emprego ser um sinal de que você só precisa confiar e esperar. Imagine alguém interpretar que a Aids é um castigo de Deus às pessoas homossexuais, ou que a peste bubônica era resultado da cólera divina para os pecadores que ofendiam os céus. Hoje sabemos que a Aids é um vírus oriundo de Macacos-Verdes domesticados por tribos africanas e espalhado por mercenários que participavam das guerras por independência nos países do continente na década de 60 e 70 (4). E você também sabe que a peste bubônica foi resultado da falta de higiene que gerou a grande concentração de ratos nos inchados centros europeus do século XIV, que por sua vez carregavam pulgas hospedeiras da bactéria (5).
Para controlar quem era “autorizado” a falar com Deus, os cristãos nomearam homens que seriam o representante dEle na terra e, portanto, controladores da “vontade divina”. Padres, pastores, bispos, sacerdotes, papas… Homens com o poder de nos dizer o que Deus quer e gosta. Mas mesmo assim, qualquer um interpreta qualquer coisa ao seu bel-prazer.
E depois de toda a polêmica envolvendo o Especial de Natal do Porta dos Fundos, parece que as pessoas interpretaram que Deus não gosta de ser retratado como gay. Essa interpretação chegou a níveis tão poderosos que a justiça brasileira (que deveria ser cega e, sobretudo, laica) ordenou a retirada do vídeo da Netflix sobe pena de multa de 150 mil reais por dia de desobediência (3).
“Deus não gosta de homossexuais. Eu la na Bíblia”. Eu sei. Está em Levítico capítulo 20, versículo 13. E diz assim: “O castigo por actos homossexuais é a morte para ambas as partes; trata-se duma abominação - a culpa recai sobre eles próprios”. Ok. Então, só é preciso se lembrar que foi no mesmo Levítico [11:7-8] que ele proíbe comer carne de porco; e [19:27] que fica proibido fazer a barba ou cortar os cabelos curtos. Se você foi no barbeiro e comeu um bacon na sequência, para essa passagem bíblica, você é tão pecador quanto o homossexual.
Além disso, o que seria a Bíblia se não um copilado de interpretações sobre Deus e suas vontades?
Por que Deus não pode ser homossexual? Por que representar Jesus como gay ofende tanto? Por que o especial de Natal do mesmo Porta dos Fundos do ano anterior que representava um Jesus bêbado, drogado, machão e corno (6), não ofendeu? Por que as pessoas acham que Deus está ofendido com um e não com o outro? Ele por um acaso disse isso pra alguém?
Ao meu ver, parece que algumas pessoas estão apenas escondendo sua homofobia atrás de um delírio cristão: o de que Deus conversa com as pessoas e diz o que ele quer e gosta.
Esse delírio já matou muita gente e vai continuar matando.
Conhecimento é Conquista-FS
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