> Desde as primeiras impressões ventiladas nos corredores da cinematografia internacional sobre a excelente atuação de Fernanda Torres, eu quis muito ver "Ainda Estou Aqui", filme de Walter Salles baseado no livro de um dos próprios personagens, Marcelo Rubens Paiva. Queria ver com os meus próprios olhos se realmente Fernanda Torres atuou o suficiente para "vingar" sua mãe no famigerado "Oscar da Vergonha" e trazer a primeira estatueta para o Brasil 25 anos depois.
Eu me blindei de tudo, pois queria ser completamente surpreendido pelo filme. Não li nada a respeito. Fugi de qualquer spoiler, opiniões e resenhas. Eu só sabia o óbvio: era um filme de ditadura baseado em fatos reais. Foi a melhor escolha que fiz. E se você ainda não assistiu esse filme, aqui vai um conselho: pare de ler agora e vá para um cinema. Depois você volta. Você vai me agradecer mais tarde.
Por estar completamente "limpo" de qualquer interferência - a não ser os elogios que pipocavam nos stories dos meus amigos que já tinham ido ver o filme -, eu deixei o longa cumprir o seu papel comigo e me causar tudo o que ele podia. E lá estava eu, sentado na frente da tela, na poltrona G7, ao lado da minha companheira, Carol, na poltrona G6, pronto para o que viesse.
Fernanda Torres mostrou suas credenciais muito cedo. Não demorou quase nada para eu sentir orgulho de dividir a mesma nacionalidade da segunda maior atriz brasileira em atividade - sua mãe ainda reina, mas falo dela depois. "O Oscar vem!", pensava eu cada vez que ela aparecia na tela. O privilégio maior foi ver Selton Mello, o segundo maior ator brasileiro em atividade - isso porque Matheus Nachtergaele, seu companheiro de estripulias em O Auto da Compadecida ainda atua -, na mesma tela, na mesma cena. Esses dois são Fernanda Montenegro e Paulo Autran atuando juntos para quem não pode ver Fernanda Montenegro e Paulo Autran atuando juntos.
Senti uma nostalgia que não me pertence ao ver um "Rio de Janeiro que já foi" - parafraseando Renato Russo no impecável "Plateia Livre" -, e que além disso nunca foi meu. Eu demorei muito para ir ao Rio. Comprei um medo feroz que a TV me vendeu. Mesmo assim, por anos imaginei a cidade maravilhosa exatamente como vi nesse filme. O Rio das Laranjeiras dos livros do Jô Soares ou da Rua de Matacavalos, hoje Riachuelo, de Machado de Assis. Me deu vontade de ir para a cidade carioca e sentir aquele clima que é indescritível e só quem já foi sabe do que estou falando.
Mas a paz que senti vendo as cenas da família Paiva durou pouco. Como um suflê que desanda na forma, o filme parou de ser bonito e tirou de mim toda a alegria que tinha me dado enquanto ele ainda estava no forno. Senti tensão quando uma blitz rotineira mostrava a rotina violenta daqueles tempos. Senti medo quando os "homens da Aeronáutica" chegaram e levaram Rubens Paiva embora. Ali eu já sabia que seria a última vez que eu e todo mundo o veria.
Um filme necessário. Apenas isso. Necessário. Além, claro, de ser belíssimo, sensível, emocionante, cativante, educativo...
Engraçado que o Selton Mello caracterizado de Rubens Paiva ficou muito parecido com o senhor Anselmo Schadt, também conhecido como "meu pai". Barriga saliente, dorso largo, mãos gordinhas e o bigode castanho claro. O apego com o personagem foi imediato. Por isso a dor da despedida da tela, da imagem dele entrando no carro, doeu tanto. Era como se meu pai estivesse indo embora para nunca mais voltar.
Fiquei pensando no Marcelo e tudo que poderia estar passando na cabeça dele naqueles dias de escuridão sem o pai, parceiro de totó (pebolim para nós paulistas) - o meu pai era meu parceiro de futebol de botão, mais um ponto de identificação. Fiquei curioso para ler os livros do menino Marcelo que, anos mais tarde, viraria um escritor e jornalista famoso. Sinto até um pouco de vergonha por ainda não ter lido nada dele. Será corrigido.
Mas acho que o sentimento que foi mais presente, ou pelo menos foi o mais intenso, foi a raiva. Raiva da ditadura, raiva das pessoas que a sustentaram, raiva das pessoas que ainda a defendem... Indignação, sabe? E impotência também, afinal de contas, o que eu posso fazer para mudar isso?
Ser historiador tem suas desvantagens. Você estuda algo que não pode mudar. Por fim me senti fraco e fracassado, já que sou professor e ando batendo a cabeça na parede para entender o porquê a juventude, mesmo com tanta informação, é capaz de relativizar e, no pior dos casos, concordar com gente que quer a volta desse período tão obscuro.
Aí vem o sentimento de força para tentar clarear as coisas para alunos e alunas que nem ao menos me escutam. Meu brio foi aceso! "Você tem brio?", me pergunta o professor famoso de filosofia na minha mente. "Tenho brio pra caralho, Clovão!", respondo educadamente. "Então vai! E lembre-se, PRA TRÁS NEM PRA PEGAR IMPULSO", devolve ele com um carinho no final: "Seu bosta!".
Mas nada me devastou tanto quanto Fernanda Montenegro sentada no canto da mesa do almoço em família, quieta, amuada, muda. Para satisfazer você, só os dez minutos que ela aparece sem falar uma única palavra foi infinitamente maior do que a Gwyneth Paltrow fez em toda sua carreira.
Sozinha em seu próprio mundo, a melhor atriz brasileira em atividade me fez sentir culpa. Minha avó materna, a dona Antônia, também sofre de Alzheimer. É exatamente como retratado pelo filme: uma senhorinha abatida que nada fala e que fica à mercê do tempo.
Vou aqui confessar uma coisa muito dolorosa sobre isso. Eu prefiro pensar que minha avó não está mais entre nós. De certa forma isso me causa certo conforto e me prepara para a ausência que é iminente. Eu já estou vivendo meu luto pela partida da dona Antônia. No filme, os filhos fizeram a mesma coisa com o pai e, talvez, estavam fazendo a mesma coisa com a mãe que jazia viva na cadeira. Eu acho que escolhi entender que minha vó já se foi pra doer menos quando ela de fato ir. Peço que não me julgue - talvez, peço demais.
E é aqui que vem o sentimento de culpa. Num lampejo de lucidez, a personagem de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, a Eunice Paiva, reconhece toda história que viveu em uma reportagem que passava na TV (que estava na sua frente como uma "babá eletrônica") - exatamente como acontece com a minha avó. É nesse momento do filme que eu entendi: ela ainda estava ali. E se ela ainda estava ali, minha avó também está. Tem que estar. Só pode estar.
E lá estava eu, sentado na frente da tela, na poltrona G7, ao lado da minha companheira Carol na poltrona G6, com lágrimas rolando pelo rosto e em puro silêncio vendo os créditos subirem enquanto as fotos reais da família Paiva iluminavam a sala. Meu torpor só terminou quando as luzes se acenderam e a Carol encostou a mão no meu ombro e, com o rosto também inchado de tanto chorar, me chamou para irmos embora.
Um filme necessário. Apenas isso. Necessário. Além, claro, de ser belíssimo, sensível, emocionante, cativante, educativo...
Esse filme é capaz de te fazer sentir de tudo. Esse filme me fez sentir tudo.
Conhecimento é conquista
-FS
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