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Foto do escritorFelipe Schadt

Deus está morto. Qual é a sua parcela de culpa nisso?


Fiz duas provocações no meu Instagram. Ambas por meio dos Stories.


A primeira eu trouxe uma frase do filósofo Yuval Noah Harari que dizia:

“Mais de um século depois de Nietzsche declara-lo morto, parece que Deus está voltando. Mas isso é uma miragem. Deus está morto - só que livrar-se do corpo leva um tempinho.”


A segunda eu fiz uma pergunta - que se você não viu lá no meu Instagram, pode se dar ao luxo de responder aqui. Dizia a pergunta:

“Você ganhou uma viagem com tudo pago, mas pode escolher um desses destinos:


a) Piracicaba, durante quatro dias

b) O lugar que você sempre quis conhecer na vida (não importa qual), durante um mês


Mas há um porém! Se escolher a opção B, você terá que tomar uma pílula assim que chegar em casa que fará com que você se esqueça de tudo o que aconteceu na viagem dos seus sonhos. Você não terá nenhuma memória dela. Será como se ela não tivesse acontecido.

Qual você escolheria?”


Não existe resposta certa. A única coisa que importa é o que essa resposta diz sobre a sua participação na morte de Deus. Se você escolheu a opção A, fique tranquilo, você está com as mãos limpas e não tem participação nenhuma nesse teogicídio. Agora se você escolheu a opção B, melhor você procurar um bom advogado.


Brincadeiras a parte, vou explicar. E para isso terei que te fazer entender que não foi você quem tomou essa decisão entre A ou B, foi um dos seus dois eus interiores.

Começo a explicação te convidando a pensar sobre algo perturbador. E se eu te disse que não existe livre-arbítrio e que na verdade suas escolhas não são feitas por você? E se eu te disser que nossas escolhas são resultados de impulsos randômicos e determinísticos? Você já se perguntou, após escolher entre assistir séries em casa ou ir no bar com os amigos, o porquê você quis escolher o que escolheu? Pensar sobre isso é um exercício filosófico muito refinado, mas para não nos estendermos muito, venha comigo na seguinte ideia: nossas escolhas são determinadas por reações bioquímicas que estão alheias à nossa vontade.


Entendido (e não significa aceitado) isso, vamos dar uma olhada num dos experimentos do Nobel de Economia (em 2020) Daniel Kahneman. Ele submeteu um grupo de voluntários a três ações. A primeira era colocar a mão em um recipiente com água em temperatura de 14ºC por um período de 60 segundos. Na segunda ação, ele pediu para que os voluntários colocassem a mão em outro recipiente que também continha água com os mesmos 14ºC mas por um período maior, 90 segundos. Sem eles perceberem, era aumentada a temperatura da água para 15ºC nos 30 segundos finais. A terceira parte consistia em perguntar aos voluntários “Qual experiência você repetiria, a de 60 segundos ou a de 90 segundos?”


Antes de eu dizer o que a maioria escolheu, vamos analisar a experiência. Não é agradável manter a mão em um recipiente com água gelada. Mesmo aumentando um grau da temperatura, ainda sim é desconfortável. Então, qual a experiência que você acha que a maioria dos voluntários quiseram repetir?


Se você respondeu a mais curta, você errou.


Incrivelmente os voluntários escolheram repetir a experiência mais longa, ou seja, manter a mão em agua fria por 30 segundos a mais do que a outra opção. E por que diabos eles escolheram isso? Bom, primeiro porque não foram eles na apoteose do seu livre-arbítrio que escolheram. Quem tomou a decisão foi o Eu narrativo.


A ideia de que somos indivíduos tem que ser deixada para trás por um instante para você continuar caminhando nesse texto. Indivíduo é algo indivisível, significa que você é UM. Mas experiências modernas já nos disseram que nosso cérebro, por exemplo, é dividido em dois e cada uma das partes trabalha de maneira diferente. O hemisfério esquerdo tendo mais influência sobre a fala e o raciocínio e o hemisfério direito desempenhando um papel mais decisivo sobre o processamento da informação espacial. Como no cérebro, também existem dois EUS: o eu que sente e o eu que narra.

O Eu que sente é o eu que vive pelas experiências sensoriais, mas que não se lembra. Já o Eu narrativo é o que se lembra das sensações e tece uma história sobre elas. No experimento de Kahneman, podemos observar bem a diferença entre eles e a predominância do segundo sobre o primeiro.


O Eu narrativo não considera a experiência do incomodo da água fria levando em conta o tempo, mas sim dois fatores: o pico de experiência x o final da experiência. Isso significa que, para o Eu narrativo valia muito mais a pena ficar mais tempo com a mão na água, porque houve um pico de melhora (aumento da temperatura de 14 para 15ºC). Muito melhor do que passar 30 segundos a menos sem nenhum pico de melhora. Se a decisão fosse tomada pelo Eu que sente, ele escolheria passar menos tempo com a mão na água, já que o aumento de temperatura foi insignificante para justificar continuar sentindo aquele desconforto.


Vamos a outro exemplo. Pergunte para qualquer mulher que pariu um filho naturalmente sobre a dor. Ela provavelmente te dirá que foi “a pior dor que ela já sentiu”. Pergunte a ela se ela gostaria de passar por isso outra vez. Quem e sã consciência iria querer sentir a pior dor que já sentiu outra vez? Pois é… então por que existem mulheres que querem ter mais do que um filho? Porque é o Eu Narrativo que está fazendo essa escolha. E por que? Porque ele avalia a experiência como um todo: doeu, mas na sequência o corpo feminino foi enxurrado com hormônios como cortisol e betaendorfinas que reduzem a dor e proporcionam prazer, sem contar o amor incondicional pelo bebe que acabou de nascer. Portanto, mesmo com a “pior dor que já sentiu”, a experiência foi boa por todo o resto. Mães que não querem nem ouvir falar em parir outra vez estão tomando essa decisão baseadas unicamente na experiência e não na narrativa construída dela.


“O eu da narrativa percorre nossas experiências como um par de tesouras afiado e um pincel atômico preto e grosso. Ele censura - pelo menos alguns - momentos de horror e guarda no arquivo uma história com final feliz” (1)


Acho que agora podemos voltar para aquela pergunta que fiz no meu Instagram: qual viagem você escolheria?


Para aqueles dominados pelo Eu Narrativo, a escolha não poderia ter sido outra se não a resposta A. Do que vale uma experiência se ela não pode ser lembrada depois? Já os dominados pelos Eu que sente, a resposta óbvia foi a B. Não me importo em lembrar, importo em sentir.


“Tá, mas o que isso tem a ver com a minha participação na morte de Deus?”, você, que respondeu a B e é dominado pelo Eu que sente, deve estar me perguntando. Vamos recorrer a Nietzsche.


A famosa frase “Deus está morto” aparece em várias obras do filósofo alemão. A que eu mais gosto é uma das que aparecem em Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém escrito entre 1883 e 1885. Na ocasião a frase nem é tão direta assim. A frase é resultado de um diálogo entre o profeta Zaratustra e um velho Papa que, naquele momento, não tinha mais um Deus. Zaratustra tenta confortar o velho religioso dando-lhe abrigo e dizendo que deveria esperar por alguém que ressuscitasse o seu Deus “Pois esse velho Deus não vive mais. Está completamente morto!” (2). Porem, a frase original apareceu pela primeira vez em Gaia Ciência, livro escrito por Nietzsche em 1882. “O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos!” (3)


O que Nietzsche quis dizer com essa frase não é tão bem compreendida. Ele era um ateu convicto e como ele poderia crer na morte de algo que ele não acreditava existir? Nietzsche na verdade estava se referindo a morte do pensamento cristão como justificativa para as nossas ações em vida. A morte de Deus significa, em linhas gerais, deixar de acreditar na vida após a morte. Para aqueles que negavam os prazeres da vida por medo do que lhes aconteceriam depois de morrer, Nietzsche os chamavam de Niilistas, pois negavam a certeza da vida pela incerteza da vida eterna. Quando você deixa de acreditar em uma vida eterna (já que não existe nenhuma garantia de sua existência, a não ser a fé) e passa a viver baseado nas experiências e não em promessas e em histórias, você está matando Deus.


Ora meu amigo, eu não sei se você percebeu aqui a cereja do nosso bolo. Aqueles que escolheram a opção B, claramente optaram por viver o momento, independente do que possa acontecer depois. Para exercício, troque a viagem por uma comida favorita, ou por um filme predileto, ou por um encontro com alguém… Em todos os casos, a resposta não mudará. Você, dominado pelo Eu que sente escolherá sentir, pois inconscientemente você prefere a experiência do que a narrativa dela. Continue no exercício e troque a viagem pela sua vida: viver intensamente e não se importar com o que virá depois ou viver preocupado com as memórias que terá da vida e o que elas lhe causarão numa eventual pós-vida?


Como disse no início do texto, não há resposta certa. Mas ela diz muito sobre você. Diz sobre a sua preferência em valorizar a certeza da terra ou a promessa do céu.


Conhecimento é Conquista

-FS

(1) Ulla Waldenström, "Women's Memory ChildBirth at Two Months and One Year after the Birth", in HARARI, Y. N. Homo Deus: Uma breve história do amanhã. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p. 301.


(2) NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 249. (3) ____________________. Gaia Ciência. São Paulo: Editora Escala, 2008, p. 129.

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1 Comment


Rafael Diniz
Rafael Diniz
Jan 06, 2023

Que textão, Felipe. Parabéns! Encotrei por acaso ao pesquisar no google sobre a experiência das mãos na água fria, que li, salvo engano, no livro do Harari e não estava me lembrando de como era. Foi uma grata surpresa me deparar com essa beleza de artigo que você produziu! Não te conhecia, mas vou começar a procurar mais por seus conteúdos. Um abraço.

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