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Diário de Bordo #17 - Eles podem até ser mentirosos, mas eles não estão perdidos

  • Foto do escritor: Felipe Schadt
    Felipe Schadt
  • há 3 dias
  • 7 min de leitura

Atualizado: há 3 dias


Gian (bateria), Pedro e Lucas (guitarras) "flutuando" no palco do Villa Pizza Bar
Gian (bateria), Pedro e Lucas (guitarras) "flutuando" no palco do Villa Pizza Bar

> Eu estava lutando para conseguir ver o palco em sua totalidade. Isso porque um grupo de amigos insistiam em beber e conversar em pé, bem na minha frente. Eu inclinava a cabeça para um lado e para o outro e só conseguia ver parcelas da atração principal da noite.


Eu até poderia tentar mudar de lugar, mas o Villa Pizza Bar, em Jundiaí, estava lotado para, como eu, ver três rapazes tocarem um rock rebelde, mas nada displicente. 


Era minha primeira vez em um show da Lost Liars e eu fiquei impressionado não só com o que eles faziam no palco, mas o que eles faziam com as pessoas que estavam fora dele. O grupo de amigos que bebiam em pé na minha frente era uma exceção, um ponto fora da curva de uma plateia atenta ao trio que fazia todo mundo, ao menos, balançar a cabeça com o ritmo de suas músicas.


Eu estava tão imerso e tão concentrado em tentar vê-los que quase tomei um susto quando o baterista fez um anúncio: "Queríamos chamar o nosso professor no palco". O professor era eu.


Câmbio!

...


Era o segundo convite que meus alunos Lucas e Gian haviam me feito para assistir sua banda. Eu já os conhecia pelas redes sociais muito antes disso, mas nunca tinha visto ao vivo. Lembro que a coisa que mais estranhei foi ter visto três meninos, duas guitarras, uma bateria e nada de um baixo. Na minha cabeça, a banda estava incompleta e torci o nariz. Mas quis o destino que dois desses meninos virassem meus alunos na faculdade e, se não pude aceitar o primeiro convite, não iria deixar o segundo chamamento passar.


Cheguei um pouco em cima da hora no Villa Pizza Bar - uma tradicional pizzaria de Jundiaí que fica em uma travessa da Avenida 9 de Julho, a mais badalada da cidade -, ou pelo menos próximo do horário dos meus alunos subirem no palco. Quando cheguei, não havia ninguém na recepção e o barulho da plateia se misturava com a dos músicos da banda de abertura. Temi que a casa estivesse lotada e eu não pudesse mais entrar.


Para minha sorte, ainda havia lugar. Para meu azar, a recepcionista não estava muito feliz aquele dia. Cara de poucos amigos e sem nenhuma questão de ser simpática, ela cobrou minha entrada, colocou a pulseira em mim e desapareceu sem deixar rastros. Mas a falta de simpatia da moça da recepção nem foi sentida, pois ouvi um "Olha quem eu encontro na saída, o Felipe Schadt". Era Lucas, meu aluno e vocalista da banda, feliz em me ver. "Saída não, entrada! Eu disse que viria."


Assim que entrei, fui avistado por um batalhão de alunos. Acontece que Gian, meu outro aluno da faculdade e baterista da banda, namora a Manu, minha ex-aluna do ensino médio que, por sua vez, é muito amiga dos meus atuais alunos do terceirão. Além disso, a banda dos meus alunos universitários tem um apelo muito forte com a garotada dessa idade. Matheus e Miguel também são meus alunos, mas de outro colégio e, fãs da banda, também estavam por lá. 


Até a minha chefe encontrei. Ela estava conversando com a mãe da Manu e me reconheceu enquanto eu estava passando. Ambas ficaram felizes em me ver e disseram que não fazia muito tempo estavam falando o quanto os alunos gostam de mim. Eu respondi com um sorriso sincero: "eu gosto muito mais deles". Minha chefe perguntou se eu já havia assistido ao show da banda da noite e eu disse que era minha primeira vez. "Assiste que você vai virar fã", me alertou. Ela não podia estar mais certa.


O trio de Jundiaí é tudo o que qualquer banda de início de carreira sonha ser: relevantes!

Gian me viu e, mesmo de boca cheia de pizza, conseguiu abrir um sorriso e me cumprimentar. Saudações feitas e, após conseguir engolir o pedaço de massa com mussarela e molho de tomate, ele me fez um convite que seria possível dizer não. "Se a gente chamar o senhor no palco, canta uma com a gente?" Eu nem tinha digerido a pergunta direito quando ele me disse que a música seria Yellow do Coldplay. Como seria possível dizer não?


Mas a banda de abertura, um conjunto de estudantes de música da School of Rock, não tinha nada a ver com isso e, como num passe de mágica, os primeiros acordes da mesma Yellow começaram a ressoar no ambiente. Pensei comigo que naquela noite eles ouviriam Coldplay em dose dupla.


A Lost Liars foi formada em 2021, ou seja, não têm ainda cinco anos de estrada. Isso significa que quando a banda surgiu, a Genomma - minha banda - estavas às portas para lançar seu segundo álbum e comemorar 12 anos. E essa matemática é importante para essa história não para enaltecer a minha experiência como músico, mas para apontar para o fato de que a banda de quase quatro anos de existência fez no intervalo de uma Copa do Mundo o que a minha não conseguiu em uma década e meia.


Gian, Lucas e Pedro são três rapazes que vivem o que cantam de uma maneira invejável. Completamente dedicados à sua arte, o trio de Jundiaí é tudo o que qualquer banda de início de carreira sonha ser: relevantes!


Casa lotada para o show da Lost Liars
Casa lotada para o show da Lost Liars

E essa relevância é percebida a olhos vistos enquanto eles preparavam o palco com seus instrumentos. Seus fãs - sim, eles têm fãs - já se aprumavam na frente do palco para ter a melhor vista do show. Com um profissionalismo que não condiz com a idade dos garotos, tudo foi montado rápido. Eles dominavam tanto a situação que até o técnico de som da casa, conhecido pelo seu exímio mau humor, sorria para os meninos como quem sabe que o show que estava prestes a começar seria impecável.


Músicos fora do palco se "escondendo" no camarim improvisado no banheiro da pizzaria, música de abertura para introduzi-los no palco, plateia atenta e luzes azuis indicavam que o show iria começar. Esse cuidado com a experiência eu só fui ter, por exemplo, quando já estávamos às portas do lançamento do nosso primeiro álbum (com dez anos de banda). 


Aplausos quando eles subiram no palco. Eu mesmo não resisti e soltei um "uhuuu". Eu estava entregue, mas curioso com o fato de eles não terem um baixista. Queria saber como soaria ao vivo músicas de rock sem um elemento importante como a base do contra-baixo. 


O show começou e sim, senti falta do baixo. Mas essa falta passou rápido. Não sei se só foi comigo, mas você acaba se acostumando com a sonoridade das duas guitarras e da bateria, ainda mais porque o repertório da noite estava repleto de músicas autorais, feito para as duas guitarras. 


Aliás, as músicas autorais são em sua grande maioria em inglês. A vantagem é que se você é um desavisado - como eu - e não conhece o repertório da banda, vai tranquilamente acreditar que as músicas da Lost Liars são músicas consagradas do indie rock internacional. Durante o show fiquei pensando: "Se esses moleques são do subúrbio de Londres ou Manchester, estariam lotando estádios numa hora dessas". Mas também fiquei curioso em ouvi-los cantando mais em português. A música "Cena de Cinema", por exemplo, caberia fácil em um show de qualquer banda nacional dos anos 2015 para cá. Pensei mais um pouco: "Se eles investissem mais nas letras em português, já já serão atração do Lollapalooza".


Entrei no seguinte devaneio: Assisti-los foi como me assistir há 12 anos. Na verdade, há 12 anos o Felipe Schadt da banda Genomma não tinha ideia para onde queria ir e se enganava a si mesmo sobre o que era - completamente diferente dos rapazes da Lost Liars. Eu fui para o passado no qual eu sonhava com um futuro que nunca aconteceu para mim. Eu quero dizer que aqueles três caras no palco eram tudo o que o Felipe de 12 anos atrás queria ter sido e não foi. 


Minha viagem no tempo terminou quando ouço Gian me chamar no palco. Tinha me esquecido de que havia combinado com ele que cantaria Yellow de tão imerso que estava no show. Fui muito bem recepcionado e o adulto de 36 anos de idade ficou nervoso ao lado dos garotos de menos de 20. O nervosismo passou quando o primeiro acorde foi tocado. 


Esses rapazes não sabem, mas eles fizeram muito por mim naquele dia. Ao me dar espaço em seu show, eles permitiram que o Felipe de 12 anos atrás pudesse ser o vocalista que sempre quis ser há 12 anos atrás. Foi como se eu fizesse parte daquela banda no auge da minha juventude. Se eu fosse parte da Lost Liars há 12 anos atrás, eu teria conquistado o mundo.


Eu e Lucas Negri: dois vocalistas dividindo o mesmo microfone
Eu e Lucas Negri: dois vocalistas dividindo o mesmo microfone

Além disso, o show me ensinou muitas coisas sobre conexão com público. Eles têm uma base de fãs ainda pequena, mas muito barulhenta. Fiquei me perguntando como conseguiram isso e a resposta veio no mesmo dia: eles vivem o que catam e sabem o que querem cantar. Sem contar a qualidade dos três que dispensa qualquer comentário.


A Lost Liars é uma banda mentirosa. Mentirosa porque ela passa uma imagem de banda de garagem de três caras que estão fazendo tudo isso como uma grande brincadeira, quando a verdade é que eles são completamente assertivos e conscientes naquilo que se propõe a fazer. Vê-los fora do palco é uma coisa, vê-los em cima dele é algo completamente diferente e inesperado. Eles não estão brincando de ser uma banda. 


Gian, Lucas e Pedro te enganam direitinho mas diferente do que o nome da banda sugere, eles não estão nem um pouco perdidos. Sabem o que querem e parece que já sabem o que vem pela frente. Desconfio que eles foram para o futuro e voltaram para fazer exatamente o que deve ser feito.


Eu afirmo aqui sem medo de errar: a Lost Liars é a banda mais promissora de uma Jundiaí que ainda insiste nessa ideia de cena, ideia essa que já não fazia sentido nem há 12 anos atrás. Ao contrário de todos os saudosistas - e eu me incluo nisso -, o jovem power trio está preocupado em fazer o seu rolê, a sua própria cena. Quem quiser, e puder, que os acompanhe, pois eles são como um trem que está prestes a sair da estação de Jundiaí rumo à luz do sucesso enquanto todo o resto não passa de locomotivas estacionadas vivendo da própria irrelevância.


Câmbio, desligo.


Conhecimento é conquista.

-FS


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