*Esta é um obra de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência*
Assim que deixou o jatinho que a trouxera do Rio de Janeiro, Lisa Orsi, acompanhada do capitão Carvalho, seguiu até um carro que os esperava na própria pista de pouso do aeroporto de Campo de Marte, na Zona Norte de São Paulo. Dentro do carro, Lisa permanecia calada enquanto encarava seu indesejado acompanhante militar. Tudo o que ela precisava saber sobre o caso já tinha sido revelado para ela: dados sobre um suposto atentado, uma foto desfocada de um sujeito com uma camiseta amarela e informações sobre um chip USB que ela deveria decodificar. Nada mais saia da boca do sujeito fardado. O caminho até a Avenida Paulista seria mais longo do que ela previa. Encostou a cabeça no vidro fechado do carro, tirou os óculos e se permitiu pensar em Alberto.
Ele era um dos sujeitos mais inteligentes que ela já havia conhecido. Foi no ensino médio, em uma escola de Brasília, que eles se cruzaram pela primeira vez. Ela, a aluna brilhante, ele, o novo professor de Filosofia recém formado. Lisa se lembrava bem de quando se conheceram. Ela estava preenchendo o formulário de escolha de disciplinas opinativas na secretaria do colégio. Havia escolhido Artes e História, deixando de lado outras disciplinas como Filosofia. Parece que não terei ninguém na minha turma esse semestre, disse uma voz atrás dela que soava certa angústia. Ela olhou para o dono da voz e viu um rapaz que não aparentava ter mais do que 25 anos. Ele se apresentou como o novo professor de Filosofia. Por que não quer fazer minha disciplina? Ela não conseguia responder. Ele disse: Se você tem medo das respostas, sugiro que não faça Filosofia mesmo. Mas se você é corajosa, ficarei feliz em vê-la na minha sala.
Lisa achou aquilo uma afronta à sua inteligência e, de pirraça, não mudou suas escolhas. Não quero ter aula com um sujeito desses que se acha o dono da verdade. Foi o que ela pensou quando entregou o formulário para a secretaria. Semanas depois, ouviu nos corredores muitos alunos elogiando a aula do professor. Diziam que ele adorava fazer perguntas. As meninas diziam que ele era tão bonito quanto era inteligente. Relutante, mas curiosa o bastante, Lisa bateu na porta na sala do professor pouco antes da aula começar. Posso assistir sua aula? Com um sorriso satisfeito no rosto, Alberto respondeu: Não. E fechou a porta na cara dela. Aquilo a deixou furiosa, mas não menos intrigada pelo professor.
Esperou até o fim da aula para falar algumas verdades para ele. Como assim ele vai me tratar desse jeito? Ele vai saber que não pode me tratar assim! Na verdade, Lisa sabia que não precisava dizer nada, mas algo a fazia querer vê-lo outra vez. Assim que a aula acabou, ela voltou pra frente da sala de Alberto e cruzou os braços. Ah… A menina que rejeitou minha aula e que agora foi rejeitada. Entre, estamos quites. Ela não entrou e começou a vomitar sua indignação para ele. O que você fez comigo não é justo! Alberto olhou para ela e retrucou: O que é justiça, senhorita Orsi? Ela ficou atônita sem saber o que responder. Você tem medo das respostas? Ele voltou a questioná-la. Não!, respondeu Lisa. Então me procure no ponto de ônibus na frente da escola. Tenho perguntas para te fazer.
Daquele dia em diante, Alberto se tornou uma espécie de mentor para Lisa. Ensinava pra ela tudo que sabia sobre Filosofia. Mas não a mesma que ensinava na escola. Essas coisas que eu te falo eu jamais poderia dizer em sala de aula. Seria preso, talvez. Confessou ele certa vez, explicando que graças a um professor que ele conheceu em São Paulo, teve acesso a informações que não estavam acessíveis pra todo mundo. As vezes eu acho que você inventa tudo isso. Se queixou Lisa. Alberto tentava explicar que o que ele sabia era oriundo de uma fonte de conhecimento no qual ele não podia dizer qual era. Eu te ensino o milagre, mas não posso te contar o santo, ok? Ela concordava, mas sempre tentava tirar de Alberto seus segredos e ele sempre dizia pra ela: Quando você perder o medo das respostas, poderá fazer as suas perguntas.
A curiosidade de Lisa e a disposição em ensinar de Alberto eram a combinação perfeita para que a dupla continuasse se encontrando no ponto de ônibus na frente da escola. A conversa durava até que o transporte que levava Alberto para casa chegasse. Lisa, morava próximo à escola e voltava a pé, dizendo para os pais que estava fazendo aulas extras de Filosofia. Todos dos dias, Lisa e Alberto falavam sobre Deus, Universo, Saudade, Amor e qualquer assunto que a filosofia dele pudesse dar conta. Não demorou muito para que ela percebesse que estava sentindo algo a mais por ele. Tentou negar o sentimento ao máximo, mas a aula sobre Platão e Éros fez ela perceber que desejava seu professor. Um dia criou coragem e resolveu dizer a verdade: Estou apaixonada por você, Alberto. Percebi que te amo à moda de Platão! Aquilo deixou o professor desconcertado. Melhor você ir embora, senhorita Orsi. Era tudo o que ela não esperava. Aos prantos, por causa da raiva que sentia de si mesmo, se encarava no espelho de casa lamentando sua ideia de se declarar. Burra! Em qual mundo ele iria te querer!?
No dia seguinte, Lisa viu o ponto de ônibus vazio. Esperou por ele, mas não viu seu professor. Iria pedir desculpas pelo mal entendido do dia anterior, mas Alberto não apareceu. E nem no dia seguinte ou no dia depois deste. Resolveu ir até a sala de aula no qual ele lecionava para esperá-lo, porém, assim que a aula acabou e a porta da sala se abriu, o professor que estava dentro dela não era mais Alberto. Parou um dos alunos que saia da sala e perguntou pelo antigo professor. Ele não dá mais aula pra gente. Faz uns três dias que ele pediu demissão. Aquilo deixou Lisa profundamente triste. Cabisbaixa, seguiu em direção a saída da escola e resolveu sentar no ponto ônibus que servia de sala de aula para ela e Alberto. Não pôde conter as lágrimas que saiam de seus olhos. O problema do amor em Platão é que quando ele se concretiza, ele acaba. Ela olhou para trás e viu Alberto de pé, do mesmo jeito que havia visto ele pela primeira vez.
Tenho um presente para você. Ele tirou de uma caixinha um colar com um pingente em forma de coruja dourada com uma pedrinha de cristal no meio. Explicou para Lisa que a coruja era o símbolo da Filosofia e que gostaria que ela usasse. Eu não vou aceitar nada de você enquanto você não disser o que está acontecendo. Ele se sentou do lado dela tentou explicar. Não poderia mais dar aula aqui. Fui corrompido. Percebi que estava amando uma aluna e isso não seria bom para ninguém. Foi um erro eu te envolver nisso e preciso me afastar para não cultivar esse sentimento e te prejudicar. Lisa não acreditava no que ouvia. Mesmo fazendo sentido, ela não queria aceitar o fato de duas pessoas não poderem ficar juntas. Isso não é justo, ela disse. O que é justiça?, respondeu ele. Não é nosso momento, Lisa. E eu sei que um dia, a gente vai poder ficar junto. Os dois ficaram sem dizer nada depois disso por alguns minutos até que o ônibus de Alberto surgiu na rua. Ele ofereceu o colar novamente para ela, mas Lisa se recusou a pegá-lo. Entristecido, ele entrou no ônibus e, pela janela, via sua ex-aluna chorar sozinha.
Lisa não se conformava com aquilo. Tinha 17 anos e faria 18 há alguns meses. Junto disso, terminaria o Ensino Médio e nada os impediria de ficarem juntos. Ela já era uma mulher formada e não iria deixar aquele sentimento de lado por causa de uma burocracia. Ficamos juntos e escondidos até novembro e, no meu aniversário, eu te apresento como meu amigo e meses depois a gente assume o nosso namoro. Era o plano que ela tinha em mente e repetia todos os dias. Resolveu ir atrás de Alberto. Conseguiu descobrir o seu endereço e, num dia depois da aula, foi até a casa de seu ex-professor para lhe contar sobre seu plano.
Ao chegar lá, tocou a campainha mas ninguém atendeu. Ela não tinha o telefone dele e por isso não podia ligar. Resolveu esperar. Sentou na calçada e esperou a tarde toda. Eram quase sete da noite quando ela vê Alberto chegando do mesmo ônibus que sempre pegava. Ela percebeu o rosto de surpresa dele quando a viu na frente de sua casa. Antes que ele pudesse falar algo, ela o abraçou, ele cedeu e correspondeu o carinho. Sem dizer nada, um olhou para o outro e um beijo forte e longo aconteceu. O beijo se desenrolou até que os dois estivessem dentro da casa dele. Ele tentou pará-la. Se afastou e disse o quanto aquilo não era certo. Ela retrucou: O que é certo? Ele sorriu e protestou: Você não pode usar minhas perguntas contra mim. Ela tirou a parte de cima da roupa revelando que não estava usando sutiã e disse: Pensei que não tivesse medo das respostas. Os dois se agarraram e começaram a se tocar. Alberto colocou ela na cama e, depois de tirar toda sua roupa, deu um beijo no seu ombro, outro no centro do seu pescoço e seguiu o caminho com mais outros 12 beijos pelo seu corpo em pontos estratégicos. Ele explicou para ela que havia beijado nos 14 pontos referentes à constelação de escorpião. Cada beijo significa uma das estrelas de escorpião, agora falta um beijo, o que representa a estrela principal: Antares. Entre os seios dela, Alberto pousou os lábios fechando o ritual. Lisa estava paralisada de tanto prazer que sentia por aquele homem que a penetrou fazendo ela senti-lo por completo.
Vestindo suas roupas. Lisa se sentia plena e completa por ter acabado de transar com Alberto. Ele sentou do lado dela e abriu a mão revelando o colar com o pingente de coruja. Vai aceitar ou não? Ela fez sinal que sim com a cabeça e ele colocou o colar nela. Ela segurou a coruja e deu um sorriso para ele. Eu tenho um plano… Alberto interrompeu ela com um beijo. Eu não quero saber de planos com você. Quero só viver. Sem pensar. Podemos fazer assim? Ela fez que sim com a cabeça e voltou a beijá-lo. Quando te verei outra vez?, quis saber Lisa. Quando você quiser, respondeu Alberto. Antes de sair, ela disse que também tinha um presente para ele. Era um pequeno relógio de bolso em formato de coruja. Para toda vez que você ver as horas, lembrar que é hora de pensar em mim, ela disse sorrindo. Ele segurou o presente e a beijou mais uma vez.
E por três meses eles viveram assim. Ela ia para casa dele umas duas vezes por semana. Faziam sexo, brincavam de imaginar o futuro e escolhiam os lugares onde eles passariam o Réveillon juntos. Promete pra mim que um dia a gente vai ver os fogos em Copacabana? Era o que ele dizia toda vez que falavam sobre o ano novo. Claro que eu prometo! Era o que ela sempre respondia. Mesmo sem planejar nada, o plano de Lisa estava funcionando. Faltavam menos de três meses para ela completar 18 anos e poder assumir publicamente um relacionamento com alguém mais velho. Aquilo a animava muito.
Numa sexta-feira, mentiu, como de costume, para os pais. Disse que iria para a casa de uma amiga comemorar o aniversário dela depois da aula. Na verdade, iria comemorar o aniversário de relacionamento dos dois. Era um dia 22 de agosto e ela tinha encomendado um bolo para ele. Como de costume, ela chegaria de surpresa. Ela não gostava disso, mas Alberto não usava telefone para se comunicar, o que a deixava com raiva na maioria das vezes que queria falar com ele ou saber como estava. Foi para casa se arrumar para o encontro. Assim que passou pela sala, rumo à porta, viu sua mãe na frente da televisão assistindo o noticiário local. Normalmente aquilo não chamava a sua atenção, mas algo a fez parar. Uma repórter estava falando para a câmera enquanto uma casa completamente destruída pelas chamas estava atrás dela. Rapidamente Lisa reconheceu a casa. Era a casa de Alberto. Lentamente foi chegando perto da televisão e nem escutou direito o que sua mãe havia comentado sobre o fato. A repórter dizia: Segundo o corpo de bombeiros a casa pegou fogo na madrugada de ontem para hoje devido uma pane elétrica em uma das tomadas da sala… Lisa pensava mentalmente: Não, por favor não. Por favor! A repórter continuou: … No local, só havia uma pessoa. Lisa já começava a chorar e já estava balbuciando: Não… Por favor… Não… Não… A voz da repórter ficou dramática: … Alberto Machado de 25 anos não conseguiu deixar a residência e morreu carbonizado no local.
As palavras fizeram eco na cabeça de Lisa e o mundo começou a girar. Tudo em sua volta parecia flutuar e não conseguia escutar mais nada. Perdeu o controle sobre seu corpo e sentiu a gravidade a puxando para baixo. Tudo havia ficado escuro para Lisa Orsi. A imagem da televisão anunciando a morte de Alberto ficava repetindo na sua cabeça cada vez mais rápido e mais alto. Uma tristeza profunda atingiu seu coração e ela se afogava no vazio que sua alma sentia. Ao fundo ouvia a voz de Alberto a chamando: Lisa? Lisa?… Você está acordada? Senhorita Orsi? Senhorita Orsi? Chegamos… Senhorita Orsi… De repente ela é sugada de volta para a realidade e abre os olhos quando percebe que o capitão Carvalho estava chamando por ela.
- Senhorita Orsi? Nós já chegamos. - Disse o capitão da maneira mais delicada que conseguiu.
- Desculpa, eu dei uma cochilada. - Lisa tentava se recompor. Foi um pesadelo… Maldito pesadelo.
- Vamos, estão nos esperando.
Com um aceno de cabeça, Lisa deixou o carro e recebeu a brisa abafada de São Paulo. Tateou seu peito em busca de seu colar de coruja, segurou com força e pensou sobre as suas lembranças de Alberto. Adoraria que tivesse sido só um pesadelo. Respirou fundo e resolveu fazer como sempre fizera, deixar o passado para trás e seguir em frente. Olhou para o capitão e perguntou:
- Onde está o computador?
…
As roupas do outro policial serviram bem em Marcelo. Roberto ajeitava o segundo corpo do lado do primeiro, ambos encostados na parede perto de uma das prateleiras de livros da biblioteca secreta. Preocupado com o mal cheiro que os corpos causariam, eles encharcaram dezenas de panos de chão com álcool que haviam encontrado junto dos produtos de limpeza da área de serviço e cobriram os corpos com eles.
- Tem certeza que isso vai funcionar?
- Tenho! - Respondeu Roberto.
- Quando vamos voltar para tirar esses corpos daqui?
- Eu não sei ainda, mas espero que a gente saiba antes que o efeito do álcool acabe. Agora precisamos sair. Vamos aproveitar que eles já desconectaram as câmeras e sair sem ser registrados pelo monitoramento.
Com o pequeno monitor que utilizaram para assistir ao assassinato de Daniel, Marcelo e Roberto, agora vestidos com as roupas dos policiais mortos, deixaram a cova para trás e foram rumo a saída da agência. No saguão, encontraram o pinguim de geladeira no balcão onde ficava o computador de Daniel. Passaram pela porta e a fecharam. Viram a viatura estacionada na frente, com o giroflex ligado. Abriram o carro e entraram nele. Roberto assumiu o volante e Marcelo, assim que fechou a porta do passageiro, pegou seu celular e viu que um monte de mensagens de ligações perdidas de Judy apareciam na tela graças ao sinal de telefone que agora era rastreado pelo seu aparelho. Ignorou todas e começou a discar o número da casa de seus pais.
- Pra quem está ligando? - Quis saber Roberto.
- Para meus pais. Preciso saber se estão bem, pois a polícia apareceu lá hoje…
Roberto tirou o telefone da mão de Marcelo e o jogou pela janela.
- Como assim a polícia apareceu na sua casa? Que história é essa?
- Preciso saber se meus pais estão bem, Roberto! Que merda você fez, cara?
- Você não tinha falado que a policia foi na sua casa!
- Eu esqueci de avisar… - Marcelo já estava se odiando por ter deixado escapar. - Eu estava falando com a minha mãe quando ela teve que desligar por causa da visita da polícia.
- Quando foi isso?
- Pouco antes da policia chegar na agência.
- Você está na mira, Marcelo. Não pode usar seu celular.
- E como faço pra saber dos meus pais?
- Usa o meu. Ele é criptografado. Mas não ligue para ninguém da sua família. Se a policia estiver com eles, podem estar esperando você entrar em contato para te rastrear.
- Mas seu celular não é criptografado?
- Ele é, mas o sinal dele é rastreável. O que ele faz é não deixar rastros de ligações na redes. É como se você ligasse e desaparecesse depois.
Marcelo pegou o celular e o único número que sabia de cor era de Judy. Discou o número. Uma voz sonolenta atendeu.
- Alô?
- Judy! Sou eu, Marcelo!
- Marcelo!!! Você está bem? Onde você está, pelo amor de Deus?
- Eu ainda não posso contar, mas eu estou bem. Preciso que você me faça um favor. Preciso que você vá até minha casa e veja se meus pais estão bem.
- Por que? O que aconteceu com eles?
- Eu não sei, Judy. É por isso que eu preciso que você vá lá, para descobrir isso pra mim.
- Marcelo… O que está acontecendo?
- Eu juro que eu te conto. Assim que eu ajudar um amigo, eu vou te encontrar e te contar tudo. Vá até a casa dos meus pais. Você chega lá em quanto tempo?
- Em dez minutos eu chego lá. Marcelo…
- Ok, Judy. Te ligo em 15 minutos. Preciso desligar.
- Espera!… - Protestou.
- Fala…
- Nada… eu vou correr para casa dos seus pais.
- Obrigado. Preciso ir.
Marcelo desligou o telefone e entregou a Roberto.
- Fique com ele. Logo você precisará ligar de volta para quem quer que seja que vai até a casa de seus pais.
- Certo.
- Vamos para o hotel que estou hospedado. Prometo não demorar.
…
Num meio fio de uma rua próxima a agência dos correios, o celular de Marcelo estava jogado com algumas rachaduras na tela que estava completamente preta e sem vida. De repente, um brilho apareceu e o celular começou a vibrar continuamente. Era uma ligação. Na tela rachada, uma palavra apareceu logo acima de um botão verde e outro vermelho: Mãe.