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Um Web-LIvro de Felipe Schadt

Ilustrações de Jeckson Fernandes

A Novíssima República

Capítulo 3

"O repórter de Paris"

*Esta é um obra de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência*

     A música, alta o suficiente para incomodar os ouvidos mais resistentes, havia terminado. No palco, a dupla de sertanejo gospel, Kleber Key e Kevin, deixava o palco enquanto era ovacionada pelo público. Donos do hit do momento, os músicos aproveitavam seu momento de fama antes que ele acabasse e desse lugar para outro artista fabricado pela indústria gospel que faturava milhões todo ano. Eram 23h48 quando o apresentador animado vestido todo de branco, com uma gravata cromada e um cabelo amarelo ouro, voltou para anunciar a atração principal da noite. Senhoras e senhores, chegamos no momento mais aguardado desse Réveillon. Com um oferecimento das Indústrias Privius e com os cumprimentos do nosso recém governador nomeado, Normando Privius, todos nós teremos a oportunidade de ter uma experiência única com o grande herói nacional, Jeremias Boaventura. Nesse instante, uma imagem de Normando Privius ao vivo no camarote aparece e o recém nomeado governador acena para as câmeras. O apresentador então olha para uma das câmeras de TV que focava nele. E para você aí de casa que não conseguiu vir, poderá assistir ao discurso normalmente. Ele voltou para a plateia. Peço a todos que coloquem seus óculos de realidade virtual no rosto, e em um minuto, exatamente às 23h50, olhem para seus tablets, ou se preferirem, para os telões espalhados por toda a avenida. O grande discurso do centenário vai começar!

     Atrás do apresentador, um membro da equipe de produção colocou os óculos nele. Fez um sinal de joia para a plateia e olhou para o seu tablet. Quase que de maneira coreografada, a multidão fez o mesmo. 23h49. Um cronômetro começou a disparar fazendo a contagem regressiva. A massa de gente vibrava a cada segundo vencido pelo relógio. Todos estavam vestindo os óculos, menos os policiais, que protegiam as entradas, as equipes técnicas que garantiam a transmissão ao vivo e pela TV, os seguranças que vigiavam a multidão, e ele. Olhou em volta e procurou pela moça a quem havia dado a credencial falsa que dava acesso ao camarote. Ele só queria que ela tirasse a atenção do segurança enquanto dava sequência ao seu plano. Vamos… Cadê você? Perguntava a si mesmo enquanto a procurava. Olhou para a direita, na direção da área VIP e a avistou. Não precisou de muito esforço para chegar até ela. Fácil caminhar entre peso morto. Olhou para o telão e viu os números se aproximando de 10 segundos restantes. A multidão começou a contar em coro. Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um! Uma gritaria eufórica seguida de um silêncio instantâneo.

     Por um momento, ele não se mexeu. Viu as pessoas hipnotizadas olhando para seus tablets. Algumas olhavam para os telões com a boca aberta. Sentiu-se sufocado por estar no meio de uma massa silenciosa. Aquela imagem de todos parados, inertes e hipnotizados era o retrato que ele tinha do país. Olhou para a moça à sua frente. Ela também estava focada em um dos telões. Será que ela vai conseguir tirar os óculos e fazer o que eu pedi? Resolveu ceder também. Colocou os óculos no rosto e viu o que todos estavam vendo. Cenas de Jeremias Boaventura em seus momentos mais marcantes antes, durante e após o seu governo. Um clipe silencioso que dava para quem assistia uma impressão de contemplar um verdadeiro Messias. De repente, uma música começa a tocar nos alto-falantes. Uma música que lembrava muito óperas de Richard Wagner. A ópera ia entrando em sua mente e o fazia sentir cada vez mais imerso nas imagens que eram projetadas. A única coisa que ouvia era a música e sua própria respiração. As imagens de Jeremias iam passeando pelos seus olhos, trazendo um ambiente de paz e conforto. Conseguiram construir uma imagem tão poderosa do ex-presidente que era impossível não admirá-lo daquele ponto de vista. Ele realmente parece com um herói. Um cutucão no ombro o acordou do transe. Imediatamente ele tirou os óculos.

- Ei! Quando eu devo ir para o camarote? - Perguntou a moça com a credencial na mão.

Assustado ele olhou para o relógio. 23h52? Droga, perdi dois minutos! Queria agradecer a moça por tê-lo despertado, mas não havia mais nem um segundo a perder. Pediu para ela ir imediatamente. Enquanto observava a mulher indo até a entrada do camarote, se culpou por ter sido hipnotizado pelos efeitos especiais. De repente, a multidão começou a gritar eufórica. Ele olhou para o telão e não viu nada, a não ser uma imagem abstrata. Colocou seus óculos e olhou para o mesmo telão. Dele, Jeremias Boaventura saía em três dimensões e acenava para as pessoas na avenida. Tirou os óculos e a voz do ex-presidente soou nos alto-falantes. Boa noite, povo brasileiro. Boa noite, povo da Paulista! Mais gritos! E a cada fala, as pessoas não se continham. E não era para menos, pois a tecnologia de realidade virtual foi tão avançada que a imagem de Jeremias interagia com o público. Parece que ele realmente está se comunicando com essas pessoas. Era impressionante. Viu-se hipnotizado outra vez pelo que estava acontecendo quando escutou uma comoção à sua direita. Era a moça, discutindo com o segurança que guardava a entrada da área VIP. O segurança percebera que a credencial era falsa, mas a moça continuava tentando desesperadamente convencê-lo do contrário. Com o segurança ocupado, era hora de agir.

     Foi na direção do técnico de vídeo que chupava um pirulito e observava atentamente em seu monitor o discurso do ex-presidente. Com seus óculos nas mãos, ele chegou perto da cabine onde se encontrava o técnico. Fez uma cara de desespero.

 

- Cara, pelo amor de Deus, me ajuda. Meus óculos não estão funcionando! Estou perdendo o discurso!! - Disse levando os óculos para perto do técnico de imagens.

 

- Desculpa, cara. Não posso te ajudar.

 

- Você não entende! Eu gastei todas as minhas economias para vir pra cá. Eu não faço ideia do que tá acontecendo, olha ele pra mim, por favor! - Eu não consigo ser mais desesperado que isso, cara. Transtornado, mas com certa pena, o técnico pegou os óculos da mão dele e colocou no rosto para analisar.

 

- Cara, ele me parece norma… - Um soco certeiro na nuca fez o técnico apagar e cair no chão com os óculos ainda no rosto.

 

     Com o segurança mais próximo tendo que conter a moça que tentava convencê-lo a deixá-la entrar no camarote, não foi difícil para ele passar pelo cordão de isolamento e arrastar o técnico de imagem para de baixo do palco. Pegou o boné e o colete do sujeito e olhou para seu relógio. 23h57. Tem que ser agora! Chegou até a mesa de controle de vídeo e acessou o computador central. Pegou no seu escapulário o micro chip USB e inseriu na lateral do computador. Imediatamente a imagem de Jeremias havia sumido. A reação da multidão também foi instantânea. Vaias por todos os lados. Tiraram os óculos do rosto e olharam para os telões. Em todos eles, o ex-presidente foi substituído por imagens de Paris, de repente um repórter com um jornal parisiense nas mãos apareceu na tela.

     

     Atônito e olhando para a Televisão na sala de TV do Palácio do Alvorada, no Distrito Federal, o presidente eleito Guto Boaventura não acreditava no que seus olhos viam. Enquanto dezenas de pessoas ligavam para outras pessoas e andavam para lá e para cá em um desespero apocalíptico, Guto viu a imagem de seu tataravô se transformar em uma reportagem que denunciavam o governo boaventurista de manipular uma série de informações, sobretudo acerca da Terceira Guerra Mundial. Esse estrago precisa ser desfeito. E precisa ser desfeito agora! Em choque, o presidente eleito olhou para um de seus assessores e disse com uma frieza mortal. Resolvam isso. Não me importo como. Só quero que seja agora! E liguem para o Privius. Apertou com tanta força o copo de agua com gás que estava tomando que ele estilhaçou em suas mãos. A correria atrás dele se intensificou.

 

     Guto pegou o controle e aumentou o volume. Queria ouvir o que aquele repórter em Paris estava dizendo.

 


     

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     Vocês estão vendo a Torre Eiffel ao fundo, atrás de mim. Também podem ver que os parisienses estão vivendo normalmente suas vidas. Olhem para esse jornal que seguro em minhas mãos. Um zoom aproxima a imagem do jornal, focando na data. Prestem atenção na data. Isso mesmo. 14 de agosto de 2021, um dia depois do final da suposta Terceira Guerra Mundial. 

     No mesmo instante, um sujeito com um headset na cabeça e de cara vermelha de tanto esforço físico, chegou na mesa de controle de vídeo e viu que estava vazia. Imediatamente desligou os cabos de energia que alimentavam a máquina. O vídeo desapareceu no momento que o repórter enfatizava para as câmeras de que Não houve a Terceira Guerra Mundial. O sujeito de rosto vermelho estava tentando entender o que havia acontecido. A multidão compartilhava em suas redes sociais no Onisciente aquilo que acabara de gravar em seus tablets. O vídeo do repórter em Paris viralizaria em questão de minutos, não só pela presença da TV, mas por milhares de pessoas terem compartilhado quase que ao vivo o vídeo que dizia que jamais houve uma guerra entre Brasil e Europa. Em cima do palco, o apresentador tentava conter a plateia de uma maneira quase que desastrosa. Senhoras e senhores, parece que tivemos uma falha técnica, mas vamos… Só um segundo… Ah, claro. Música, vamos de música! Não? Não! Vamos para a contagem regressiva para os fogos! Faltava ainda pouco mais de um minuto, eram 23h58 e alguns segundos.

     

     Um minuto de vídeo foi o suficiente para causar um verdadeiro estrago na festa que Privius havia planejado. O futuro governador, inclusive, estava em estado de choque olhando para o seu telefone recebendo uma ligação de vídeo direto do Palácio do Alvorada. Um minuto também foi suficiente para o responsável pela inserção do vídeo do misterioso repórter deixar o boné e colete que havia roubado do técnico de vídeo no chão e sumir no meio da multidão que se perguntava o que havia acontecido ali. Uns questionavam a veracidade do vídeo, outros começavam a se perguntar se realmente era verdade o que o repórter havia falado. O que era para ser uma festa de final de ano, acabou se tornando um maremoto de dúvidas e confusão. A mensagem foi passada! Ele olhou para o relógio, faltavam cinco segundos para a meia noite. Uma modesta contagem regressiva, com pouquíssimos adeptos, incluindo o apresentador que forçava um entusiasmo, dava o tom para a queima de fogos que duraria cem minutos. Feliz ano novo, Novíssima República! disse para si mesmo em to irônico enquanto saía dali rumo à estação de metrô mais próxima.

     Enquanto os fogos subiam, as pessoas perdiam o interesse e começavam a ir embora. Não havia passado dez minutos do espetáculo pirotécnico e as saídas da avenida já acumulavam filas imensas. Ninguém estava mais interessado em comemorar. A dúvida que tinha sido plantada na cabeça delas era maior. Alguns insistiam e tentavam forçar uma comemoração. Mas o fato é que a maior festa de final de ano de todos os tempos, como havia prometido o recém nomeado governador, entraria para história por outro motivo.

    Quieto e completamente imerso na sua leitura, Marcelo não viu o tempo passar. Só saiu do seu transe quando Daniel empurrou o fundo falso da cova e apareceu para ele. Percebeu que já se passava da meia noite.

- Feliz ano novo, Daniel!

 

- Marcelo, é melhor você vir comigo. - Disse o guarda noturno com uma cara pálida o suficiente para assustá-lo.

 

- O que aconteceu? O mundo está acabando?

 

- Mais ou menos, preciso te mostrar uma coisa.

 

     Marcelo devolveu o livro para o lugar na prateleira que estava antes de ser retirado e seguiu Daniel. Ao saírem da área de serviço, o celular de Marcelo começou a disparar enlouquecidamente. Como não havia sinal na cova, as mensagens foram se acumulando e chegaram todas de uma vez. Será que alguém pode me contar o que está acontecendo?

 

- Daniel… O que está acontecendo?

 

- Se eu contar, você não vai acreditar. Preciso que você veja com os seu próprios olhos.

 

     Marcelo resolveu olhar algumas mensagens que chegavam enquanto caminhavam. Cara, te vi na TV!; Mano, você está muito encrencado!; Marcelo, que merda é essa que você fez, pelo amor de Deus! Me liga urgente, eu tô preocupada!! Quando ele tentou protestar algo, Daniel virou um monitor que tinha embaixo do balcão de informações. Nele, uma imagem congelada da avenida paulista e Marcelo em todos os telões. Mas que merda é essa!? De repente, uma nova mensagem chega. Cara você apareceu na TV! O que você foi fazer em Paris? Marcelo olhou mais de perto a imagem que Daniel havia salvo no computador. Era exatamente ele nos telões da avenida Paulista. Não é possível... O que eu estou fazendo nesses telões?… O que estou fazendo em Paris? Eu nunca fui para… Foi então que Marcelo percebeu o óbvio.

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