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  • Foto do escritorFelipe Schadt

Rousseau estava meio certo


Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

> Olha… vou confessar uma coisa para você. Eu fui severamente afetado por toda essa história da quarentena que não está sendo levada a sério. Há duas semanas, quando uma onda de pessoas que resolveram por conta própria que a pandemia não era mais um risco e voltaram a se aglomerar em praias, bares, restaurantes e churrascos furtivos, eu fui atingido em cheio. Nossa… eu fiquei com raiva, desfiz conexões nas redes sociais com um monte de gente, silenciei parentes, encerrei amizades. Tudo isso por causa do excesso de indignação que tomou conta de mim e mandou os meus dedos apertarem freneticamente o botão “bloquear”.


Interessante como as amizades virtuais acabaram com o ônus das relações. Antes, era muito difícil simplesmente ignorar um amigo. Hoje, graças a liquidez, amizades nascem e morrem numa velocidade de um click. Não é preciso mais lidar com uma relação que te chateia. Te afetou negativamente, já era. Bloqueado. Afinal, ninguém é obrigado a ver que uma pessoa que você tinha certa dose de admiração, te decepcionar com uma selfie na praia lotada no meio da maior pandemia dos últimos 100 anos.


Mas a pergunta que me fiz e que te convido a refletir comigo é: por que isso chateia? Digo… por que as pessoas que estão desrespeitando a pandemia pelo prazer de um churrasco interfere diretamente no humor das outras que estão há quase meio ano trancafiados em casa? Se quiser, vem comigo… vou tentar achar um caminho para essas perguntas. Se vou ter sucesso… ah… aí só os deuses e você, se ficar até o final, poderão dizer.


Qual é a grande característica da nossa espécie? Se você perguntar para um biólogo ele dirá que talvez seja a capacidade que nosso cérebro tem de assimilar histórias e criar padrões. Outros até poderiam dizer que é a nossa capacidade de adaptação ao meio. Se perguntar para um antropólogo, ele poderia dizer que nosso domínio sobre a linguagem é o que nos diferencia de outros animais. Se você perguntar para um religioso, ele dirá que é porque possuímos uma alma. Agora e se você perguntar para um filósofo?


“Ei, seu filosofo. Qual é a grande característica da nossa espécie?”


Aristóteles diria que, diferente de todos no universo, a gente é capaz de não obedecer nossa natureza, o que seria horrível na visão do grego. Kant diria que temos a capacidade de agir com a razão enquanto todo o resto age pelos instintos. Sartre, por sua vez, diria que possuímos o poder da escolha e que somos escravos desse poder. Já Rousseau diria que a principal característica da nossa espécie é o sentimento de cooperação.


Nossa espécie é uma das mais frágeis fisicamente que existem entre os mamíferos no reino animal. Não somos os mais velozes. Não somos os mais fortes. Não somos os com maior destreza. Não somos os mais resistentes. Não somos os mais altos. Nem os melhores para se camuflar e se esconder. Não somos nem os mais bonitos. Na hierarquia da lei da selva, seríamos meros vassalos de outros tantos animais infinitamente mais poderosos que nós.


Se você colocar um bebe recém nascido ao lado de um potro igualmente estreante da vida, verá que um já saberá andar e procurar por comida. O outro, chorará até morrer de fome ou dentro do estômago de um predador. Outras espécies, como lobos e elefantes, que também já nascem com habilidades para, de certa maneira, se virar sozinhos, andam em bando tendo como uma das principais funções proteger os recém chegados à vida. Mas todos esses animais, em bando ou não, ainda são capazes de sobreviverem sozinhos logo nos primeiros dias de vida, enquanto um ser humano precisa de pelo menos alguns anos para poder caçar o próprio alimento.


Isso significa que sozinhos seríamos incapazes de sobreviver na natureza. Mesmo adultos, pela nossa fragilidade física, precisamos de outros para complementar o que nos falta. Se você é baixinho, precisará da ajuda de alguém alto para que ele possa pegar as frutas nas copas das árvores enquanto você o ajuda pegando os cogumelos dentro de buracos pequenos demais para as mãos de uma pessoa grande. Um baixinho e um altão, juntos conseguem obter uma refeição rica e diversificada enquanto sozinhos, um só comeria fruta e outro só comeria cogumelos. Uma pessoa ágil consegue caçar pequenos animais devido sua destreza, uma pessoa forte, por sua vez, consegue garantir proteção contra animais maiores. E assim por diante…


Humanos são bons juntos e não sozinhos. Como nascemos com biotipos diferentes, uma equipe de seres humanos com diferentes habilidades tem muito mais chances de sobreviver. Mais, tem muito mais chances de sair da condição de preza frágil para predador perigoso. Portanto, isso justifica a fala de Rousseau: a cooperação é a principal característica da nossa espécie.


Por isso, inclusive, que Rousseau disse aquela famosa frase: o homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe. Nós nascemos com esse sentimento de cooperação, que é um sentimento bom. Precisamos da cooperação para sobreviver, logo, ser cooperativo, ou seja, bom, é inerente à nossa espécie. Nessa lógica, nós nascemos bons.


Mas se somos uma espécie que naturalmente coopera um com o outro, o que foi que aconteceu que algumas pessoas pararam de cooperar? Por que as pessoas não estão cooperando com as outras para diminuir a transmissão do vírus?


Aqui você pode colocar a conta nos sistemas sociais que foram surgindo com a evolução da nossa espécie. E isso começou com a descoberta e desenvolvimento da agricultura. Quando um grupo descobre que se jogar uma semente no chão, regá-la e esperar um pouco ela dará comida, tudo muda para nós. Não vou me alongar nisso, prometo dedicar um texto a esse tema em outra oportunidade, mas por hora fiquemos com a seguinte lógica:


Um grupo de seres humanos planta grãos que são suficientes para alimentá-lo. Outro grupo, que não sabe ainda plantar nada se aproxima. O grupo plantador teme por sua plantação, uma vez que se o grupo invasor querer comer o que foi plantado, não terá comida suficiente para todos. Para proteger sua plantação, o grupo cerca o terreno, delimitando aquele local como sua propriedade. Assim começam a surgir os sentimentos sociais, por exemplo: a ganancia do grupo plantador de não querer dividir com o outro grupo; e a inveja do grupo que não sabe plantar pela plantação do grupo plantador.


Um não acha justo ter que dividir o que plantou com o outro que não sabe plantar. O outro não acha justo eles não possuírem tal habilidade. Um grupo vive confortavelmente, o outro com mais dificuldade. E o que antes era fundamental para a sobrevivência, passa a ser apenas uma escolha de conduta. Cooperar ou não não é mais essencial. Não se enxerga mais o outro como possível aliado, agora o outro é sempre um possível inimigo. Isso graças ao sentido de propriedade privada.


A propriedade privada colocou humanos contra outros humanos. Criou classes de quem tem contra quem não tem. Dividiu pessoas entre ricas e pobres. Jogou nosso senso de cooperação na lata do lixo da evolução. Quando você é um humano socialmente vencedor, ou seja, que possui um acumulo de propriedade privada, você não precisa de ajuda de ninguém. Você já venceu. Se precisar de alguém alto para pegar suas frutas, você paga com propriedade privada. Se precisar de alguém forte para te proteger de predadores, você paga com propriedade privada. Não precisa de cooperação quando você pode pagar por ela. A cooperação só é útil para quem, ao contrário, não tem esse poder de compra.


Se você pensar bem, ainda vivemos numa selva, diferente, mas ainda uma selva. Um ser humano sem propriedades precisará da cooperação de outros iguais para que ele possa sobreviver no jogo social. A diferença é que antes, a necessidade da cooperação te acompanhava do berço à cova. Hoje, assim que você consegue um pequeno acúmulo de propriedade privada, já acha que não precisa mais de cooperação e muito menos cooperar. A bondade humana começou a morrer no dia em que a primeira cerca foi construída.


Quando eu vi muitos amigos meus, parentes e pessoas que eu nutria certa admiração ligando o foda-se para a pandemia e literalmente colocando a vida de outras pessoas em risco, isso me chateou. Eu sei que você quer se divertir, mas quando sua diversão coloca outras pessoas em perigo, você precisa rever isso. E por que? Por causa da principal característica da nossa espécie: a cooperação. Quando você nega cooperar você está negando sua condição de ser humano. E é isso que me incomoda. Já que você, por ter um mínimo de propriedade privada acumulada, entende que não precisa mais da cooperação por que você já venceu no jogo social. Você já tem um trabalho, já paga suas contas… você não precisa mais de ajuda. Alias esse discurso é muito característico dos nossos tempos: "você só depende de você mesmo”.


Essa quarentena era a chance que tínhamos de cooperar uns com os outros. E essa cooperação nos levaria para outro caminho. Um caminho diferente do que vivemos até aqui. Sei lá… talvez eu esteja divagando demais… Talvez seja a hora de aceitar que a nossa espécie perdeu. Talvez seja a hora de aceitar que a cooperação não seja mais a principal característica do ser humano. Talvez seja a hora de aceitar que Rousseau estava meio certo: o homem nascia bom e a sociedade o corrompeu pra sempre.


P.s.: E antes que eu me esqueça, um recado para você que está cooperando com as medidas de isolamento social para conter o vírus. Não se sinta um trouxa. Se sinta um Homo sapiens que deu certo.

Conhecimento é Conquista

-FS

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