O Martelo das Bruxas
- Felipe Schadt
- 3 de dez.
- 5 min de leitura

Século XV. Europa medieval. Um pedido do Papa Inocêncio VIII reverberou por toda a Igreja Católica que já sentia os sintomas da onda protestante que lhe "roubava" fiéis. Para dar uma resposta aos fiéis que ficaram, a bula papal pedia com urgência um método para combater o próprio diabo. Dois padres alemães assumiram a demanda. James Sprenger e Heinrich Kreamer escreveram um manual de instruções que ensinava inquisidores a identificar e caçar o demônio. Tanto Inocêncio quanto os padres - e por que não dizer a comunidade católica como um todo - acreditavam que o diabo tinha um pacto natural com as mulheres e por meio delas se manifestava. Elas, portanto, eram o alvo do tal livro, o Malleus Meleficarum, ou O Martelo das Bruxas.
Catarina Karsten foi abusada e assassinada no caminho da sua aula de natação em Florianópolis no último dia 21 de novembro. Seu assassino, Giovane Correa Mayer, de 21 anos, confessou ter cometido os atos sob efeito de drogas. Giovane já era investigado pela polícia após ser considerado o principal suspeito em um caso envolvendo o abuso sexual de uma mulher idosa em 2022.
Cinco dias mais tarde, no dia 26 de novembro, a Justiça de Mato Grosso anulou a condenação de Nauder Junior Alves Andrade, que havia sido sentenciado a 10 anos de prisão por tentar matar a namorada Emily Tenório Medeiros com uma barra de ferro, em Cuiabá. Quem despachou a ordem foi outro homem, o desembargador Wesley Sanchez Lacerda que tomou a decisão baseado no depoimento da vítima que teria dito que Nauder parou de agredi-la por vontade própria.
No dia seguinte, 27 de novembro, uma jovem de 19 anos foi morta a tiros, no povoado de Felicianópolis, zona rural de Jaborandi, no oeste da Bahia. O responsável pelo crime foi o ex-companheiro dela, identificado como Paulo Henrique Silva Conceição, que entrou na casa da jovem e a assassinou enquanto tomava banho.
Um dia depois, 28 de novembro, João Antônio Miranda Tello Gonçalves matou duas funcionárias do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet) do Maracanã, na Zona Norte do Rio. As vítimas são Allane de Souza Pedrotti Mattos e Layse Costa Pinheiro. O criminoso se matou no local do crime.
Menos de 24 horas depois, já no dia 29 de novembro, Thiago Schulz - conhecido como o Calvo da Campari - foi preso por agredir a namorada pelo menos 11 vezes. Nayara Thibes gravou um vídeo de um dos momentos das agressões. Segundo os advogados da vítima, Thiago teria tentado estuprá-la e, como não conseguiu, partiu para a agressão. No vídeo é possível ouvir o agressor dizendo "Pra mim você não nega". Ele foi preso, mas solto no mesmo dia. Sem perder tempo, já lançou um vídeo contando sua versão da história: "Errei sim, mas sou homem para vir aqui assumir". O Calvo da Campari ficou famoso pela misoginia falada sem pudor em podcasts ciberespaço a fora.
No domingo, 30 de novembro, Tainara Souza Santos, de 31 anos, foi atropelada e arrastada pela Marginal Tietê por Douglas Alves da Silva, seu ex-namorado. Tainara sobreviveu, mas está em estado grave no hospital e precisou amputar as duas pernas devido a brutalidade a qual foi submetida. O agressor afirmou em depoimento que queria dar um susto na mulher.
E na segunda-feira, primeiro dia de dezembro, Bruno Lopes Barreto atirou pelo menos quatro vezes, usando duas armas ao mesmo tempo, contra a ex-companheira, Evelin de Souza Saraiva, de 38 anos, na manhã desta segunda-feira (1°) no bairro Jardim Fontalis, na Zona Norte de São Paulo. Segundo depoimento, o crime foi motivado por causa do ciúmes que ele sentia por Evelin ter se envolvido com outra mulher.
O nosso país tem 17 denúncias de violência contra a mulher por hora
Mas não se engane. Não foram só esses sete casos. Em dez dias, muitas outras mulheres foram vítimas de violência. Esses que relatei acima são os que viraram notícia, porém há muitos atos de violência que não saem da porta das casas de muitas mulheres no Brasil. Só na cidade de São Paulo, o número de feminicídio saltou de 13 em 2016 para 53 em 2025. Mas não acredito em aumento da violência. Acredito no aumento da notificação dos casos. O ódio contra as mulheres não é uma novidade, a diferença é que agora há câmeras para mostrá-lo para todo mundo.
E microfones também. A onda de misoginia que sempre permeou os espaços masculinos ganhou força e ampliação. Se você é homem, você sabe do que estou falando. Aquelas piadas machistas no futebol de final de semana, aqueles comentários sobre os corpos das mulheres que passam pela rua, aquelas vezes que a ex foi chamada de louca. Isso ficava preso em uma bolha nojenta, mas a internet (principalmente via podcasts) amplificaram essas falas e reuniram adeptos.
E olha que o Brasil é referência em legislação protetiva contra mulheres vítimas de violência doméstica. A Lei Maria da Penha (que completou 19 anos em 2025) é exemplo no mundo todo, mas seu arcabouço ainda não resolveu a inquisição dos nossos dias. E falando em Maria da Penha, mulher que foi parar em uma cadeira de rodas vítima de um tiro de seu ex-companheiro, preciso fazer um parênteses.
Um dos dias que eu mais chorei de emoção na vida foi em um show do U2 em 2017, em São Paulo. A música era “Ultraviolet” e no telão a palavra “Herstory” (uma referência a History, dando ênfase para a palavra Her, que significa Ela). A performance dos irlandeses foi uma homenagem às mulheres notáveis mundo afora. Durante a música, rostos de mulheres históricas apareceram na tela gigante. Já no fim da canção, o rosto da Maria da Penha junto de seu apareceu. Aquilo me emocionou muito. Me emociona até hoje.
Um levantamento feito em agosto de 2025 pelo Ministério da Mulher mostra que o nosso país tem 17 denúncias de violência contra a mulher por hora, ou seja, cerca de 86 mil casos até a metade do ano. Isso significa uma coisa: provavelmente alguns homens do seu círculo de amizade são potenciais agressores ou já promoveram algum tipo de violência de gênero, seja física, emocional ou psicológica. Se você presenciar, não seja conivente. Disque 180.
Século XXI. Brasil pós-moderno. O pedido do Papa e o livro dos padres alemães ainda reverberam nos homens, os inquisidores contemporâneos, os verdadeiros herdeiros do diabo. Mas logo chegará o dia - e espero que seja logo - no qual as mulheres se cansarão de buscar por equidade, espaço e justiça para quererem vingança. Nesse dia, elas erguerão os mesmos martelos que foram usados contra elas e não sobrará um único demônio em pé.
Conhecimento é conquista
-FS

