top of page

O bigode do meu pai

Uma aposta na seleção brasileira mudaria tiraria o bigode do rosto do meu pai e me traumatizaria pelo resto da vida. A vingança veio 20 anos depois com um tal de 7x1. "O bigode do meu pai" narra a história do porquê eu torço para a selação alemã de futebol.

Novo Projeto(1).jpg

Prólogo

 

Aquele 17 de julho de 1994 era um dia importante para muita gente. Muita mesmo. Pelo menos para a população de dois países inteiros. Menos para mim. Eu só estava preocupado com o desenho que eu estava fazendo naquele pedaço de papel que eu carregava para cima a para baixo.

 

Se você ainda não identificou a data em questão, é a final da Copa do Mundo de futebol. Brasil e Itália disputavam a hegemonia do esporte. Cada seleção tinha três títulos e quem vencesse seria a primeira e única tetracampeã até então. O clima era pesado o suficiente para sentir nos ombros. Menos para mim. Minha inocência deixava a vida mais leve do que o papel que eu carregava para cima e para baixo.

 

Todo mundo nervoso na sala. Geral perdendo as estribeiras. Na TV, o homem que narrava o jogo estava mais tenso que os próprios jogadores. “Uhhhh” pra lá. “Uhhhh” pra cá. Frustração a cada lance. Xingamentos à mãe do cara com apito na boca toda vez que ele apitava alguma coisa. Protestos contra o time de azul. Batidinhas de palmas e palavras de incentivo como “vâmo! vâmo! vâmo!" quando o time de amarelo pegava na bola. E eu nem aí. Só estava preocupado com o papel que eu desenhava.

 

“Fim de prorrogação!”, anunciou o homem na TV. Parecia que a angústia ia acompanhar aquelas pobres almas na sala da casa dos meus tios por mais um tempinho. O que eu podia fazer? Minha preocupação era se o meu desenho ia ficar bonito se eu usasse o lápis amarelo. Quando ouço, atrás de mim, a voz do meu pai firme e decidida: “Se o Brasil ganhar os penaltis, eu raspo meu bigode!”

 

O meu mundo parou!

 

...

 

Parte 1: O pequeno pintor

 

Eu morava em um bairro muito tranquilo da tranquila cidade de Campo Limpo Paulista, interior de São Paulo. Além dos meus pais, meus avós e tios maternos viviam na mesma cidade. Já os meus tios e avós paternos, não. Um desses tios - a irmã do meu pai e seu esposo - eram meus padrinhos. Eles eram os “tios de São Paulo”, por morarem na capital. Aqueles tios que você vê pouco mas que quando vê é sempre especial!

 

Para mim, uma criança, “sempre especial” significava “sempre ganhar presentes e mimos quando via os tios de São Paulo”. Poxa, eu era afilhado deles! Fui paparicado quando eu ainda estava na barriga da minha mãe. Eu já nasci com essa carta do “Super Paparico” na manga. Mas não era só pelos mimos e presentes que eu adorava ver meus tios de São Paulo. Era porque eles sempre deixavam claro o quanto me amavam. É… Eu era uma criança de muita sorte. “Super Paparico, ATIVAR!”

 

Acontece que o Tio Pituca - apelido de infância, seu verdadeiro nome era Celso - e a Tia Sandra (os meus padrinhos) se mudaram para Campo Limpo Paulista, para uma casa que ficava na rua de baixo da rua que eu morava. E agora eu via eles basicamente todos os dias. Consequência: os presentes sem motivo por causa das visitas esporádicas se transformaram nos contados presentes sazonais de aniversário, dia das crianças e natal. O que eu esperava? Que toda vez que eu fosse até o número 20 da Avenida Brasil iria encontrar meus tios na porta de sua casa com um presente na mão? “Oi tio, oi tia! Ual! Um Ferrorama!! Mas vocês me deram um desses na semana passada. Não querem me adiantar o presente de amanhã?”

 

Se os presentes diminuíram, em compensação o amor e o carinho só aumentaram. Ainda mais entre eu e a minha prima, Natália. Tínhamos dois anos de diferença o que para uma criança de cinco anos como eu não fazia diferença nenhuma. Brincávamos muito no quintal da casa dos meus tios onde tinha uma balança de metal de dois lugares, um de frente para o outro, que mais parecia um pêndulo. 

 

Como eu vivia sempre lá, minha mãe também acabava passando boa parte dos dias com minha tia. Nos finais de semana, quem se juntava a Tia Sandra e a Josiete - que preferia e prefere até hoje ser chamada de Josy -, eram o Tio Pituca e o Anselmo. Meus padrinhos e meus pais sempre estavam armando algum churrasco aos finais de semana e a casa dos meus tios acabou se tornando o point da família.

 

Quando foi definido que o Brasil iria jogar a final da Copa do Mundo num domingo de julho, a escolha de onde iríamos assistir o jogo era mais óbvia do que a escalação de um tal de Romário no time titular da seleção: a casa dos meus tios. 

 

Para mim, seria só mais um domingo de churrasco. Algo trivial na minha curta vida até então. Nada de novo sob o Sol ainda quente de início de inverno. 

 

Vamos descer pra sua tia. - anunciou Josy.

Tá bom! Posso levar meu desenho, mãe?

 

Minha mãe nem protestou. Ter uma criança de cinco anos com sinais de tédio poderia atrapalha-la na função de torcedora. E eu dava motivo para ela pensar assim. No primeiro jogo da Copa entre Brasil e Rússia eu enchi o saco da pobre moça fã de futebol. Carente de atenção, queria disputar a da minha mãe com um jogo da seleção. Não é querendo me gabar não, mas eu venci naquele dia. Para evitar outra frustração, no segundo jogo ela me deixou com minha avó - que morava no mesmo terreno que nós - e foi para casa de uma amiga na rua de cima assistir o jogo em paz. Eu não sei o que eu fiz, mas eu me lembro da minha avó me levando pelo braço e praticamente me jogando na casa em que minha mãe estava refugiada. Ela nem viu o terceiro gol que o time de amarelo fez contra Camarões. 2 x 0 para mim.

 

Anos depois eu fui saber que o motivo da “fugidinha” da minha mãe não era só por causa do jogo, era por causa do vício do cigarro. Ela fumava escondido de mim e da minha vó e amiga dela dava cobertura, café e nicotina.

 

A salvação dela foi que, por motivos misteriosos que nunca saberei quais são, eu criei um repentino interesse por desenhar coisas. E eu era um péssimo desenhista, devo admitir. Mas gostava da sensação que era ver as coisas que estavam na minha cabeça ganharem forma na folha de papel. Minha mãe deu graças! Eu ainda não estava na escola e eu não me interessava por nada a não ser brincar com minha prima que, para o azar da Josy, passou boa parte das férias viajando com meus tios em São Paulo, na casa da Vó Rita, mãe do Tio Pituca.

 

Pode levar. Mas se eu fosse você, levava todos os seu lápis e mais papel. Porque eu não vou sair de lá pra voltar aqui pegar caso acabe, está bem?

 

Tá… Não foi assim. Foi algo mais ou menos assim:

 

Leva, Felipe. Leva! Mas leva já todas as suas coisas de desenho. Se você me encher o saco porque não tem lápis pra pintar ou papel pra desenhar, vou te colocar no quarto da sua prima pra você chorar sozinho, porque eu não vou voltar aqui pra casa nem por decreto! Você me ouviu?

 

Claro que eu ouvi. Só não prestei atenção. Levei uns cinco lápis e uma única folha de papel. Enquanto a gente descia a rua, eu só ouvia ela ranger os dentes enquanto dizia: “Se esse moleque não me deixar ver o jogo…”

 

Do lado da casa dos meus tios havia uma vendinha. Sabe aquelas vendinhas de bairro? Pequena, poucas gôndolas, etiquetas de preços feitas à mão e nenhum critério para organização dos produtos, onde você encontrava o leite condensado em cima da prateleira do sabão em pó. A vendinha da Dona Maria estava, naquele domingo, vendendo três coisas: carne, carvão e cerveja. E meu tio era um dos clientes.

 

Ele precisava renovar o estoque de bebida para a grande final. Festeiro e ansioso do jeito que era, o Tio Pituca já havia tomado algumas latinhas de cerveja naquela manhã e, com a chegada dos meus pais e de mais alguns amigos dele, era preciso garantir que não faltasse álcool. “Ou a gente bebe para comemorar ou para afogar as mágoas, Dona Maria”, disse ele para justificar a compra. Dona Maria não precisava de justificativa. Ela só precisava ver a caixa registradora cheia de dinheiro.

 

Mas meu tio não tinha ido sozinho para a vendinha. Resolveu levar as crianças junto. Estavam com ele eu, minha prima e o filho desse casal de amigos dele. Eu aprendi muito cedo a nunca recusar um convite do Pituca para nada, pois eu sempre ouviria a frase: “escolhe alguma coisa para você”. 

 

Eu escolhi um chocolate, minha prima escolheu a mesma coisa que eu. O outro menino preferiu um pirulito. Meu tio, generoso como só ele, comprou um chocolate e um pirulito para cada um. E quando estávamos saindo da vendinha, ele passou por uma lojinha de roupas que dividia porta com o estabelecimento da Dona Maria. Era a loja do Sérgio e da Marilda (filha da Dona Maria). 

 

O casal estava começando sua empreitada e teve parte do espaço cedido pela família para dar início ao seu negócio. Lá eles vendiam material de papelaria e roupas. Meu tio viu em um dos dois únicos manequins, uma camiseta genérica de Copa do Mundo: branca, com dois desenhos de um planeta desenhados na parte da frente e contornados pelas palavras em inglês World Cup seguidas de um desenho da bandeira do Brasil. Nas mangas e nas costas desenhos de bandeiras de outras países. Mas era tão genérica que tinha bandeiras de países que não estavam na Copa e de países que nem existiam. 

 

Por algum motivo o Tio Pituca achou ela legal e convenceu minha tia e minha mãe a irem na loja e comprarem uma para cada criança. Ele também queria uma, mas para a sua infelicidade, não tinha uma do tamanho necessário para vestir o seu corpinho XXG. A verdade é que os adultos já estavam uniformizados com uma camisa branca com detalhes minimalistas e sem graça e ele queria uma roupa mais alegre. 

 

Voltamos as três crianças para a loja, dessa vez com minha tia e minha mãe. Elas faziam a gente provar as camisetas ali mesmo para retornar para casa uniformizados, porém uma outra coisa me chamou atenção: um conjunto de tubos coloridos no formato de batom para pintura facial com as cores do Brasil. Lembre-se, eu estava na fase do desenho. Nem precisei me esforçar muito para ganhar as tintas. Eu também aprendi muito cedo a convencer meus tios usando o poder da argumentação ao meu favor.

 

Tia! Imagina todo mundo com a bandeira do Brasil pintada na bochecha? Vai ser mó legal! - eu tinha visto na embalagem uma modelo com a bochecha preenchida com uma bandeira do Brasil supostamente feita com os tubos de tinta que eu queria.

 

Quando voltamos para a casa dos meus tios, estavam todas as crianças uniformizadas, com chocolate e pirulito na mão e eu com um conjunto de tintas que logo estaria no rosto de todos os presentes no ressinto. E ainda haveria churrasco de almoço e sorvete para a sobremesa. Não era nem 11 horas da manhã e eu já tinha certeza que era o melhor dia da minha vida… Pobre de mim.

 

Tirei as tintas do pacote e olhei para o menino que estava conosco. Eu não via um menino. Eu via uma tela em branco, pronta para receber toda a minha inabilidade artística. Eu já imaginava aquelas lindas bochechas preenchidas com o retângulo verde, o losango amarelo e o circulo azul da bandeira nacional. Seria minha obra de arte! 

 

Não foi.

 

Eu já comentei aqui a minha falta de destreza com desenhos, não é? Pois é. O que era para ser uma bandeira do Brasil, mais pareceu um quadrado torto verde pintado todo de amarelo e com uma bola azul quase invisível. Ficou horroroso! O pai do menino, vendo aquele desastre artístico resolveu salvar as bochechas do filho, e de todo mundo, assumindo as tintas. Eu protestei! Estavam tirando de mim, um artista em invisível ascensão, as ferramentas necessárias para a minha arte. Eu era uma caricatura de Michelangelo sem tintas e sem minha Capela Cistina.

 

Ele lavou o rosto do menino e desenhou no lugar um coração. E verdade seja dita: ficou tão horroroso quanto a minha bandeira, mas pelo menos dava para sacar que era um coração verde e amarelo. Minha prima quis também e logo estava com as duas bochechas com enormes corações patrióticos. Uma quarta criança tinha acabado de chegar. Uma menininha da idade da Natália que era filha de uma outra adulta que apareceu lá. Ela ganhou, além dos corações no rosto uma estrela azul no meio da testa.

 

Pausa para essa estrela azul. Eu não quero que você pense que o quê eu vou falar agora é resultado de uma vingança contra o rapaz que fez um boicote artístico comigo. Ou por que eu fiquei com inveja dele usando as tintas que eram minhas nos rostos das pessoas que eu iria pintar. Ou que eu senti raiva por ele ter roubado a minha ideia fantástica de dar cor para aquelas caras pálidas. Mas o pai do menino desenhou uma estrela de Davi (aquela de seis pontas formadas por dois triângulos sobrepostos) na testa da criança que chegou por último. Ele queria desenhar uma estrela de campeão - que acredito ser aquela de cinco pontas -, uma em cada criança para simbolizar o quarto título mundial que tinha esperanças de ver ficar com o Brasil, mas o que conseguiria com aquilo seria apenas transformar a gente em quatro crianças fãs de Israel.

 

Minha prima não quis a estrela. Ela estava feliz com os corações. O filho do ladrão de tintas também não queria mais tinta na cara. A menina que chegara por último já não podia ser salva. Restava eu, com o rosto limpinho. Eu pude ver nos olhos dele a voracidade enquanto avançava sobre mim com os tubos de tinta azul na mão.

 

Eu quero a bandeira do Brasil! - falei pra ele. - Desenha na minha testa!

 

Eu estava com a ideia da bandeira fixa na minha cabeça. Mas percebi que a bochecha era um lugar ruim para desenhar, já que ela era uma superfície mole. Eu mesmo constatei isso quando tentei desenhar na bochecha do menino - eu acreditava que era esse o problema do meu insucesso inicial - e na testa era mais garantia de que o desenho sairia melhor. Tinha o osso da cabeça que funcionava como base reta. Ele desenhou e ficou melhor que eu imaginava.

 

Ele ganhou minha confiança com a bandeira e me convenceu a deixar ele desenhar a estrela na minha bochecha. Eu era uma criança facilmente impressionável. Deixei. E lá estava eu, um pequeno israelense perdido na sala de brasileiros. A esposa dele, vendo o marido em ação com as tintas também se empolgou e pediu para ele pintar o rosto dela. Mas ela queria algo mais espalhafatoso. Ela queria o rosto todo pintado, metade verde e a outra metade amarelo, igual os Caras Pintadas que derrubaram o Collor dois anos antes. O que ele fez na verdade foi transformar a mulher numa versão patriótica do Bozo. E eu achei aquilo fascinante. Ela, nem tanto.

 

Atenção! O Jogo iria começar. 

 

Todos se aninharam na frente da TV de tubo de 29 polegadas que morava bem no meio de um móvel gigantesco de madeira que ficava em uma das paredes da sala. Cadeiras da mesa da cozinha serviram de arquibancada organizada e como um passe de mágica, todos estavam sentados e de olhos fixos na telinha.

 

Todos os adultos, quero dizer. Minha prima e a menina que chegou por último estavam no quarto brincado de boneca. O menino estava aninhado no colo da mãe desfrutando de uma mamadeira. Eu estava sentado no chão e com o tédio batendo na porta. 

 

Olhei em volta e percebi que as atenções eram todas daqueles jogadores de amarelo e azul que corriam atras de uma bola. Parecia que nada abalaria aqueles adultos. Nenhuma coisa no mundo os fariam desviar os olhos da frente daquela máquina de raios catódicos. Eu tinha a total impressão que se o apocalipse começasse no quintal daquela casa, ele teria que esperar o jogo acabar.

 

Fui até minha mãe para reivindicar atenção. Ela só me olhou feio. Dessa vez ela não precisou nem abrir a boca. Eu tinha entendido. Minha tia e meu tio estavam fazendo um esforço danado para fingir que eu não estava pedindo atenção. Eu posso jurar que vi suor escorrendo pelas têmporas deles de tanta tensão que estavam sentindo. “Se a gente não olhar ele vai embora. Se a gente não olhar ele vai embora”. Acho que nem minha carta de “Super Paparico” iria surtir efeito diante da carta “Agora não!” que eles estavam dispostos a sacar.

 

Foi aí que olhei para o meu pai. Ele me olhou de volta, alisou o bigode e com um gesto simples, direto e reto me deu a solução. Ele apontou para o papel e os meus lápis de cor que estavam no canto da sala. Valeu, Anselmo!

...

Parte 2: Bonitões não têm vez no exército (em breve)

bottom of page