O CONFESSIONÁRIO
Capítulo I - O Milagre
(PARTE UM)
As mãos suadas seguravam um papelzinho em formato retangular que continha algumas palavras soltas como: "agradecer o público presente", "homenagear professor de semiótica", "mencionar [com humor] às entrevistas negadas" entre outras coisas. Quando olhou para frente, ele viu dezenas de pessoas bem vestidas e sentadas em cadeiras confortáveis, prontas para ouvi-lo. O ambiente era muito bonito: uma sala com grandes janelas cobertas por cortinas verde musgo, um assoalho de madeira perfeitamente lustrado, um teto alto cheio luzes e vários painéis indicando que aquela sala abrigava a solenidade que premiava os melhores jornalistas do mundo.
Ele não podia acreditar que estava ali, diante da nata jornalística do planeta, em cima de um pequeno palco em uma das salas de eventos da universidade de Columbia, em Nova York. O papel em suas mãos, agora trêmulas além de suadas, era o seu discurso de vencedor do Prêmio Pulitzer, a maior honraria do jornalismo.
O silêncio na sala era ensurdecedor. Todos estavam atentos e esperando ele falar. Decidiu que estava na hora de começar. Olhou mais uma vez para suas anotações, se empertigou e... Nada. Sua voz simplesmente estava muda e nenhuma palavra saia de boca. Achou que, com toda a certeza do mundo, era o nervosismo tomando conta da situação. Sorriu para a plateia esforçando ao máximo para não parecer sem graça. Seus olhos avistaram um copo d'água que estava no púlpito a sua frente. Mas ao tentar mexer uma das mãos para pega-lo, sentiu que não podia. Ele estava travado! O choque por ser escolhido o melhor jornalista do ano tinha-o paralisado. Os rostos das pessoas na plateia começaram a ficar cada vez mais impacientes por causa da demora do discurso.
Ele pigarreou e tentou começar do zero. Engoliu toda a saliva que conseguiu acumular dentro da boca afim de umedecer a garganta seca. Tentou falar mais uma vez e nenhum som foi capaz de sair. O desespero começou a tomar conta dele produzindo um tremor involuntário nas pernas e um suor frio nas têmporas. Quanto mais tentava falar ou se mexer, mais seu corpo o prendia. A única coisa que ele conseguia controlar eram os olhos que se mexiam nervosamente para os lados buscando por ajuda quando, para piorar as coisas, seu celular, que estava no bolso esquerdo da calça de alfaiataria que mandara fazer para a ocasião, começou a tocar freneticamente.
O público começou a tapar as orelhas por causa do volume do toque do aparelho que ficava mais alto a cada segundo. Incomodados, um a um da plateia começou a se levantar e deixar a sala a medida que o toque do celular ficava insuportável. Ele esforçou para olhar para seu bolso onde o irritante aparelho se encontrava, quase que implorando para ser atendido. A sala já estava vazia. As luzes começaram a se apagar. O som do celular ficava mais alto. O suor frio molhava o colarinho de sua camiseta. E seu corpo, duro como um poste, começou a se inclinar para frente. Ele estava caindo como uma árvore cortada e seu rosto ia de encontro ao chão, obedecendo com devoção a lei da gravidade.
Com um solavanco, Ezequiel despertou! Ele se levantou do sofá que estava deitado e quase caiu em cima da mesinha de centro de sua sala. Ele estava completamente desequilibrado devido à queda de pressão. Ele se levantou rápido demais. No chão, perto de onde dormia, seu celular que acabara de dar o último toque exibia na tela "LIGAÇÃO PERDIDA - NÚMERO DESCONHECIDO". A medida que os olhos ajustavam o foco e a intensidade de luz que entrava na sua pupila, ele retomando aos poucos a consciência de que tudo não tinha passado de um sonho. Se é que alguém pode chamar aquilo de sonho.
Ainda atordoado do sonho ruim, Ezequiel se sentou no sofá que estivera deitado segundos antes, esticou o braço até o chão e pegou o celular, agora silencioso como uma rocha. Ele sempre esperava por ligações com ofertas de trabalho e quando não conseguia atender, ficava ansioso por ter perdido a chance de receber uma pauta. Eram os bicos que fazia como jornalista que o ajudavam a pagar as contas e não gostava de perder nenhuma oportunidade de ganhar dinheiro. Pressionou o botão do lado direito do celular e a tela brilhou emitindo novamente a mensagem: "LIGAÇÃO PERDIDA - NÚMERO DESCONHECIDO". Para aumentar sua angústia, não tinha como saber quem ligou e muito menos retornar a ligação. Tentou se convencer que, ou ligariam novamente ou nem era uma oferta de trabalho.
Jogou o aparelho no sofá e ele mais uma vez se iluminou, só que agora com um som de sino e uma pequena vibração. A resposta para sua dúvida veio mais rápido do que ele esperava. Era uma mensagem. Ezequiel pressionou o dedo indicador na tela, em cima da notificação e uma mensagem de texto ficou visível para ele.
"Olá, Sr. Ezequiel. Esperamos que esteja bem. Acabamos de realizar mais uma tentativa de contato para renegociar a sua dívida com o nosso banco. Por gentileza, responda esse SMS com a palavra SIM se você quiser saber mais sobre as condições de pagamento e na sequência, envie a palavra PAGAR para receber diretamente no seu e-mail o boleto para o pagamento da primeira parcela de sua dívida. Lembramos que após nova tentativa mal sucedida de contato, nossa equipe jurídica tomará as providências legais. Faremos tudo o que for possível para facilitar o pagamento de sua pendência conosco e mantermos o senhor como um de nossos clientes. Entraremos em contato em breve. Equipe do banco Tix - Com você para o que der e vier!".
Ezequiel largou o celular no sofá mais uma vez. Ele estava fugindo das cobranças fazia algum tempo e sempre inventava uma desculpa para o banco. Pagaria o quanto antes, era o que prometia, mas para isso, ele precisava de trabalho. O problema todo era que seu nome não estava sujo somente no mercado financeiro. Ezequiel Quaresma era, possivelmente, o jornalista mais malquisto nas redações de São Paulo. Os bicos que pegava eram graças a Lauro Ferreira, um antigo colega de redação. O único que sobrou, na verdade. Lauro trabalhava em um site de notícias de médio porte e passava algumas pautas para Ezequiel, principalmente as que ninguém se voluntariava para pegar. Mas isso era feito praticamente na surdina. O acordo era que Quaresma assinasse as matérias que pegava com um pseudônimo. Nenhum jornal, nem os virtuais e de médio porte, queria ter o seu nome atrelado ao de Ezequiel Quaresma.
(PARTE DOIS)
Ezequiel Quaresma era um prodígio na faculdade de jornalismo. Desde muito cedo surpreendera seus professores com a paixão que tinha por contar histórias. Se por um lado era relapso nas disciplinas teóricas, por achar elas entediantes, dava um verdadeiro show na hora de produzir reportagens nas aulas práticas.
O grande diferencial do jovem Quaresma era sua capacidade de extrair informações precisas de seus entrevistados. Alguns colegas diziam que ele realizava algum tipo de feitiço na hora da entrevista que deixava a fonte completamente entregue e confiante, expondo tudo o que ele quisesse saber. "É só meu charme", dizia ele aos risinhos quando perguntavam "como você conseguiu fazer ele te falar essas coisas?".
Ezequiel tinha uma tática simples porém certeira. Ele pesquisava tudo o que fosse possível sobre a pessoa que seria entrevistada: sua história, rede de amigos, locais que frequentava. Com bastante munição, ele sabia fazer as perguntas certas impedindo a pessoa de se esquivar sem passar recibo de que tinha alguma culpa no cartório. Ele se orgulhava de saber exatamente quando uma pessoa mentia.
Além disso, ele era fissurado em linguagem corporal. Quaresma era um fã não declarado de Pierre Weil, um psicólogo francês famoso por escrever um livro especializado em analizar a linguagem corporal. Aliado a esse conhecimento, Ezequiel não mentira ao falar do seu charme. Sempre muito educado e sedutor, fazia com que seu entrevistado o visse como uma pessoa digna de saber seus segredos. As pessoas se sentiam confortáveis na presença dele. Ele sabia que o corpo falava e por isso fazia seu corpo dizer "pode confiar em mim".
Mas foi no último ano de faculdade que ele adicionaria mais um recurso às suas entrevistas. Como não tinha saco para as aulas teóricas, não era raro ter que pedir para os professores dessas disciplinas deixá-lo fazer algum trabalho extra que lhe rendesse nota suficiente para não ser reprovado. Todos o davam essa oportunidade, afinal ele era o aluno prodígio da faculdade e seu carisma também atingia o corpo docente. Mas houve um professor que não quis fazer o mesmo.
Era Getúlio Parvatti, professor de semiótica, um dos mais exigentes do curso. Ezequiel nunca foi com a cara do professor e deixava isso claro ao simplesmente abandonar a sala no meio da aula quando ele julgava estar chata demais. Getúlio, por sua vez, não gostava da arrogância do aluno e fazia de tudo para dificultar sua estadia na disciplina que lecionava.
Obviamente as notas de Quaresma não chegaram nem perto do esperado para ele ser aprovado e pedir para "Getúlio Gágá" - apelido que dera em segredo ao professor -, lhe dar um trabalho para compensar a nota baixa, estava fora de questão. Então ele fez o que só poderia ter feito: decidiu investigar a vida do professor Parvatti até descobrir algum podre para chantageá-lo com isso.
Demorou apenas quatro dias para que o aluno prodígio descobrisse um segredo substancialmente forte que lhe garantiria a nota que ele precisava para ser aprovado em semiótica. Após conversar com uma série de colegas de turma, Ezequiel chegou até Helena, uma aluna que estava um ano na sua frente no curso. O que se dizia pelos corredores, era que Geútilo, o professor Getúlio Parvatti, havia se envolvido com ela no ano anterior. Isso não seria nada demais, a não ser pelo fato de que ele era casado.
Para confirmar o boato, Quaresma foi conversar com Helena e não poupou nenhuma de suas táticas com a garota. Seduziu ela dizendo que havia recebido uma proposta de emprego em uma emissora de TV, mas que eles estavam procurando por alunos prestes a se formar e por isso não poderia ficar com a vaga, já que faltava um ano para ele terminar a faculdade. Ele disse ainda que havia pensado nela, pois ela tinha o perfil que a vaga procurava: "Dinâmica, inteligente e com habilidade diante das câmeras".
A partir daí, o convite para ir tomar uma cerveja no bar perto do campus foi aceito com muita facilidade por Helena. Algumas horas de conversa e muita cerveja depois, a garota já estava contando tudo sobre sua vida para Quaresma. Ele nem precisou se esforçar muito para ouvir o que queria escutar. Helena dava detalhes do relacionamento dela com o professor Getúlio. O que ela não contava é que, no bolso da camisa de Ezequiel, um pequeno gravador estava ligado.
Quaresma conseguiu a nota que precisava. A chantagem funcionou muito bem e a cara do professor ficando vermelha de espanto enquanto ouvia a gravação de sua ex-aluna dizendo o quanto ele elogiava o perfume dela quando a beijava, não deixava dúvidas de que era verdade. Ezequiel sentiu um estranho prazer com a situação. A sensação de ter poder sobre a vida de alguém era melhor do que a nota desejada. A sensação era tão boa, que ele precisava sentir aquilo outras vezes.
(PARTE TRÊS)
Mais uma vez o toque do celular despertou Ezequiel de se seus devaneios. Dessa vez, porém, ele estava menos imerso e pôde atender a chamada logo antes do seu segundo toque. Antes, se certificou de onde vinha a ligação. "LAURO" era o nome exibido na tela brilhante.
- Alô!
- Anota aí! Tenho uma pauta pra você. Mas já aviso, é pior do que as que você está acostumado a pegar. - Disse Lauro em tom de advertência.
- Como se eu pudesse recusar uma pauta por ela ser ruim. - Revidou Quaresma.
- Você sempre pode recusar... Só não reclame depois de que não tem din...
- Fala logo, Lauro! - Interrompeu Ezequiel já com um bloquinho de anotações abertos e uma caneta pronta para desferir tinta sobre o papel.
- Uma ricassa quer uma matéria sobre um brechó que ela vai inaugurar. Ela quer destaque para falar sobre as suas roupas e de como ela se sente mais próxima de Deus por colocá-las a disposição das pessoas pobres. Mais uma burguesa cafona que só ajuda a comunidade se isso render alguma publicidade. Faz o que você sabe fazer, puxa o saco, finge que está interessado e pronto. Aquela propaganda disfarçada de notícia que só você sabe fazer!
- Que só EU quero fazer, você quer dizer.
- Tá reclamando? Posso passar para algum estagiário aqui.
- Qual é o endereço e o deadline?
- Fica em Campo Limpo Paulista, bairro do Campo Verde, na fazenda Ilha dos Patos. A fonte se chama Cristina Hernandes. Já combinei com ela e disse que você iria lá hoje.
- Hoje? - Quaresma não tinha nenhuma noção de que horas eram. Afastou o celular da orelha e viu na tela que eram 10:49 da manhã.
- É! Hoje por volta das 15:00. Preciso dessa matéria para amanhã de manhã. Ela é uma potencial anunciante. Tente convencê-la a comprar uns anúncios. A comissão é boa.
- Vou tentar... - Respondeu tentando disfarçar o desânimo.
- Cadê aquele seu charme? Use ele!
- Já disse que vou tentar! Só não se esqueça que eu sou jornalista e não vendedor de anúncios.
- Você é um jornalista falido que precisa de dinheiro! Deveria me agradecer por...
- Eu já não falei que vou tentar? - Interrompeu mais uma vez com certa rispidez na voz.
- E outra coisa... - Atenuou Lauro antes de começar a falar mais baixo ao telefone. - Fique longe dos segredos dessa mulher.
- Eu não faço mais isso, Lauro! Vou apenas escrever o que a pauta pede.
- Eu sei que vai... - Lauro tentava imprimir confiança na voz. - E pra você dizer que não gosto de você, o dinheiro dessa pauta já tá liberado. Tem certeza que não quer que eu transfira para sua conta?
- Prefiro receber em espécie mesmo. Pego com você hoje a noite na sua casa quando eu voltar de Campo Limpo.
- Ok! Você quem sabe. Boa sorte lá.
(PARTE QUATRO)
Haviam poucas pessoas dividindo o vagão com Ezequiel. Ele estava no contrafluxo e o horário também favorecia. Pôde ir sentado confortavelmente sem ninguém ao seu lado, um conforto que, ele sabia, não era para muitos. O barulho do trem se misturava com alguns vendedores ambulantes que ofereciam suas guloseimas e bugigangas. O silêncio só vinha quando o trem parava e abria suas portas. Com medo da fiscalização, os vendedores paravam de anunciar seus produtos e, parado, o trem só sustentava o barulho das engrenagens, o que comparado com som do trem em movimento, parecia apenas um ruído. É... não era um silêncio, mas soava como. O inferno sonoro retornava quando um sinal soava dos auto falantes do vagão anunciando que a porta iria fechar.
Foram quase duas horas de viagem da Vila Prudente, zona leste de São Paulo, onde Quaresma morava, até a estação de Campo Limpo Paulista, o que deixou o jornalista mais cansado do que ele imaginava. Nunca havia pisado naquela cidade antes, mas ele tinha a impressão que já a conhecia de alguma forma. Até chegou a pensar que era por causa do bairro de Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, mas no fundo ele sabia que não. O fato é que não tinha nem tempo e nem interesse em saber o porquê aquela pacata cidade do interior lhe despertava memória.
Ao sair da estação, se deparou com um terminal de ônibus a sua direita, vendedores à sua esquerda e uma avenida a sua frente. Conseguiu encontrar um ponto de táxi mais a direita do terminal rodoviário. Era engraçado para ele como os taxistas de fora da capital eram mais sossegados. Claro, o ritmo era outro. Disse o endereço a um deles e, instantes depois, já estava vendo o taxímetro girar fazendo a contagem de quanto ele deveria pagar no final da corrida. Mas Quaresma estava apenas torcendo para que o taxista não iniciasse um assunto qualquer. Ele não gostava de conversar com taxistas devido seu preconceito de sempre achar que eles eram, por essência, negacionistas. Mas sabia o valor que era ter taxistas como fontes. Ele mesmo teve vários que o forneciam informações valiosas por um trocado, mas isso foi em outra vida. Ele não precisava mais desse tipo de serviço.
Ao chegar na fazenda Ilha dos Patos, Ezequiel conferiu o taxímetro: "R$ 22,50"
- Tem troco pra cinquenta, amigo?
- Num tenho doutô. Mas posso esperar o senhor aqui, aí na volta eu pego trocado com os companheiros do ponto.
Na verdade, a esperança do taxista, imaginava Quaresma, era que na volta, ele ficaria com a nota de R$ 50,00 e ouviria do passageiro algo do tipo: "fique com o troco".
- Mas não sei quanto tempo demoro aqui.
- Tem problema não, doutô. Esperar lá ou esperar aqui da na mesma. Pelo menos eu garanto uma viagem e o senhor garante o táxi da volta.
A lógica do taxista era inegável.
- Mas e se surgir outra corrida? - Insistiu Quaresma.
- Ih, doutô. Aparece não. E se aparecê, eles me avisam aqui no radinho. Mas vai por mim, essa cidade é mais parada do que Saci de patinete.
Ezequiel não conseguiu esconder a risada depois de imaginar um Saci em cima de um patinete imóvel. Se rendeu e resolveu concordar com o plano do taxista que entrou no carro, abaixou o banco e se aconchegou para tirar uma deliciosa soneca de meio de tarde.
Uma hora mais tarde, Quaresma voltava para onde o táxi estava estacionado. Ele estava mentalmente exausto. A madame que encomendara a matéria sugou todas as suas energias mostrando cada detalhe de seu brechó e vomitando informações inúteis sobre ela mesma. "Narciso ficaria constrangido perto dessa mulher", pensou o jornalista em dado momento da conversa. Ao chegar perto do carro branco, viu que o taxista estava curvado para perto do volante e atento para o som que saia do radinho colado a sua orelha.
- Acho que podemos ir. Foi mais rápido do que eu...
- Shiu!! - Chiou o taxista usando uma das mãos para reforçar o pedido de silêncio.
- Aconteceu alguma coisa? - Disse Quaresma, tentando disfarçar o quão incomodado estava com a má educação do motorista.
- Parece que o padre Artur morreu.
- Ele era seu parente? Amigo?... - Tentou ser delicado.
- Ele fez o meu casamento e o batizado dos meus dois filhos. Na verdade ele fez isso praticamente com a cidade toda.
- Meus sentimentos.
- Mas tão dizendo aqui que ele morreu em serviço.
- Ele estava rezando uma missa e morreu?
- Não, diacho! Ele acabou de empacotar. Onde já se viu missa de segunda-feira a tarde? Pelo que os parceiros do ponto estão falando aqui, ele tava no confessionário atendendo uma mulher quando ele caiu durinho no chão enquanto ela confessava os pecados.
Ezequiel não respondeu, só ficou imaginando a cena bizarra.
- Eita pecado poderoso esse que mata até padre de susto! - Tentou fazer graça, o taxista.
O faro jornalístico de Quaresma se aguçou. Diante dele estava uma história realmente fantástica. Um padre que morre enquanto está no confessionário ouvindo os segredos de uma fiel. Era uma história tão interessante que abria precedentes para se conjecturar várias coisas. Primeiro, do que o padre morreu? Teria ele realmente levado algum tipo de susto com o que ouvira da mulher? Ou teria acontecido algum crime dentro daquele confessionário e a mulher é uma assassina? Enquanto o táxi ia até a delegacia da cidade a pedido do jornalista, ele já elaborava a pauta no seu bloquinho de anotações. Fazia tempo que ele não sentia a adrenalina de uma história a ser desvendada. Faria o texto que o Lauro pediu, mas essa história do padre ele escreveria até de graça, só pelo prazer jornalístico.
Ele iria arrancar todos os segredos dessa mulher! Iria descobrir o que foi que ela falou para o padre. Ele já estava com as perguntas formuladas e, com a sua técnica, ele descobriria a verdade. Porém, não teve muita sorte na delegacia. A mulher estava em estado de choque e mal conseguia falar com o policial que preenchia o Boletim de Ocorrência. Ela estava assistida por uma enfermeira que aplicava algum medicamento intravenoso em seu braço. Estava claro que não houve crime. Além da fragilidade que a mulher apresentava, segundo os policiais, o padre já era muito velho e sofria de doenças cardíacas. Todos davam como certo um infarto como causa da morte.
Quaresma tentou uma vez mais tirar alguma informação da mulher, mas sem sucesso. Não que ela não quisesse falar. Talvez até tivesse vontade de contar o que aconteceu. Mas é que na verdade ela não conseguia dizer nada, tamanho o choque. Ele ficaria com a versão da polícia, mas lhe ocorreu a ideia de tentar saber mais sobre o padre. Voltou até o mesmo táxi que o esperava no estacionamento da delegacia e pediu para ser levado até a igreja do fato. Sem pensar, o motorista fez o ordenado e olhava com prazer para o taxímetro que continuava rodando e mostrando um valor cada vez maior a ser pago no final daquela corrida.
Assim que pôs os pés na calçada da igreja, pediu para que o taxista o esperasse ali. Era uma igreja amarela com apenas uma torre do lado esquerdo. Para acessar a entrada, havia uma grande escadaria de pedra. O átrio era simples e o nartex, quase inexistente. Porém, à direita dele, um pouco antes do primeiro banco da nave, estava o confessionário feito de madeira escura e esculpido ao estilo barroco. O corpo, obviamente, não estava mais ali. Havia sido retirado pelo carro do Instituto Médico Legal uma meia hora antes. Quaresma ficou contemplando o confessionário como se esperasse dele uma resposta.
- Muito triste o que aconteceu aqui hoje, não é mesmo? - Uma mulher idosa com os olhos embargados de lágrimas surgiu do lado de Ezequiel. - Ele era um padre tão bom!
- A senhora o conhecia?
- Praticamente a vida toda. Ele fez meu casamento e o das minhas quatro filhas...
- E aposto que batizou elas e seus netos. - Disse com gentileza o jornalista.
- Sim! Ele batizou e casou quase que a cidade inteira.
- Todo mundo se confessava com ele também?
- Ah sim! Ele era muito requisitado para isso e nunca se negou a ouvir uma confissão.
- Realmente uma perda muito grande para a cidade.
- Realmente, meu filho. Realmente. Mas ele já era de idade e precisava do devido descanso do lado de Deus... Sabe - ela mudou repentinamente o tom de voz para um mais perspicaz, como se fosse contar um fato engraçado. - fico pensando que muita gente deve estar aliviada, pois esse homem sabia os segredos da cidade inteira, mas agora que ele se foi, os segredos morreram junto com ele. Agora só Deus sabe o pecado desse povo.
Ezequiel Quaresma foi invadido por um sentimento de epifania que nunca havia experimentado. As frases da senhora ao seu lado ecoavam na sua cabeça: "muita gente aliviada", "sabia os segredos da cidade inteira", "os segredos morreram junto com ele", "só Deus sabe o pecado desse povo".
Ele começou a pensar em como seria incrível se houvesse um lugar onde as pessoas pudessem depositar seus segredos com a certeza de que ninguém pudesse saber o dono da confissão. Se essa garantia existisse, se as pessoas achassem que são anônimas, elas contariam suas intimidades sem medo algum. O que as pessoas não saberiam é que apenas ele teria poder para conhecer quem confessou. Ele só pensava em ter acesso a segredos que lhe rendessem um bom dinheiro no final. Mas como faria isso?
No mesmo instante, sente o seu celular vibrar no bolso da calça. Na tela, um e-mail com uma propaganda: "FAÇA HOJE MESMO A SUA INSCRIÇÃO PARA NOSSO CURSO DE PROGRAMAÇÃO E MONTE SEU SITE EM APENAS TRÊS AULAS".
Essa era a resposta. Um site no qual as pessoas, anonimamente, entrassem e confessassem algum segredo. Ele então, por meio do IP e horário da publicação, conseguiria, por meio de geolocalização, descobrir de onde veio a mensagem. Ele não sabia se era possível. Nos filmes isso parecia completamente plausível. Precisava tentar.
- Você o conhecia também? Ele fez o seu casamento ou batizou seus filhos? - Voltou a dizer a senhorinha ao seu lado. Quaresma despertou de seu transe com a pergunta.
- Desculpa?
- Eu perguntei se você o conhecia?
- Ah... conhecia. Ele fez o casamento da minha irmã. - Mentiu.
- Tá vendo. Ele casou e batizou a cidade inteira. Era um santo!
Ezequiel não poderia afirmar que ele era um santo. Mas definitivamente, aquele padre acabara de lhe dar um verdadeiro milagre.